A chegada do e-commerce chines Temu ao Brasil, em junho de 2024, não foi apenas a entrada de um novo player; foi o início de uma revolução no mercado de plataformas em solo verde-e-amarelo. Desafiando gigantes instalados, o marketplace trouxe uma nova dinâmica de consumo, buscando transformar não apenas a forma como os brasileiros compram mas também como os negócios enxergam o futuro do e-commerce.
Controlada pelo grupo chinês PDD Holdings, a Temu superou o Mercado Livre em número de usuários ativos em apenas seis meses, alcançando 39 milhões de usuários e se consolidando como o segundo maior marketplace do Brasil, atrás apenas da Shopee. Essa ascensão meteórica não apenas reflete a capacidade de Temu atrair consumidores com preços competitivos e promoções atraentes, mas também sua habilidade em testar novos modelos de negócio – como o C2M (sigla em inglês qu significa do cliente para o fabricante) – e outras inovações que trazem novos valores competitivos para as marcas ocidentais.
Aos Estados Unidos, a plataforma Temu chegou antes – foi lançada, pela primeira vez, em setembro de 2022. Em 2023 e 2024, já chamava a atenção do mundo com alto investimento em anúncios ao longo do Super Bowl , a concorrida partida final do futebol americano. No ano passado, a campanha apresentada foi “Você pode comprar como um bilionário”, repetida três vezes por 30 segundos, quando, estima-se, a empresa despendeu mais de US$ 21 milhões em mídia e disponibilizou US$ 15 milhões em cupons de desconto e brindes. Foi assim que o mundo ocidental conheceu a Temu em um único dia.
Para uma empresa que opera bem em mais de 70 países, a Temu nos leva a perguntar: o que ela tem de diferente dos demais marketplaces? A resposta padrão seria: preços mais baixos devido ao seu modelo de negócio que elimina intermediários. Mas… será que só isso é suficiente para explicar sua ascensão? Acredito que não. Para chegar a uma resposta mais realista, convido os leitores de CKGSB Knowledge a não ficarem apenas boiando na superfície e sim mergulharem no fenômeno Temu, utilizando como lente um framework de vanguarda nascido no Brasil que nos leva ao marketing do futuro: AEIOU.
Framework AEIOU passo a passo na Temu
Em 2024, em coautoria com Silvio Meira, apresentei a “Teoria AEIOU” no livro Marketing do Futuro: Um método para resolver desafios de marketing em mercados de plataformas. Esse framework inovador — cujo acrônimo representa os pilares de ambiente, estratégia, interações, operações e unificação — oferece uma abordagem estruturada para dissecar e compreender negócios em plataformas, antecipando as dinâmicas que moldam o futuro dos mercados digitais.
“A” de ambiente na Temu – os principais diferenciais
Para entender o ambiente em que a Temu opera, é essencial analisar seus cenários e sua atuação em mercados em rede, a fim de entender sua vantagem competitiva nesse ecossistema. Antes de tudo, a Temu deve ser vista como parte de uma estratégia global de internacionalização do marketing do Grupo PDD Holdings, incorporada como Whaleco Technology Limited (Dublin, Irlanda). Sua missão? Conquistar consumidores que buscam preços mais competitivos ao redor do mundo. Essa expansão ocorreu em um momento estratégico: durante a pandemia de covid-19, um período que acelerou significativamente a transformação e abriu novas oportunidades para plataformas de ruptura como Temu.
A essência da Temu está enraizada na expertise do Pinduoduo em crescer rapidamente em um dos mercados de e-commerce mais competitivos do mundo. Como uma águia observando atentamente o cenário brasileiro, repleto de gigantes como Amazon, Magalu, Shopee, Shein e Mercado Livre, Temu introduziu atrativos que trouxessem diferenciais competitivos além dos preços baixos, como frete grátis, uma política de devolução de até 90 dias e, principalmente, a transformação da compra em uma experiência gamificada e envolvente.
No Brasil, um país de dimensões continentais, frete grátis não é apenas um atrativo — é um fator decisivo para conquistar consumidores sensíveis a custos. Temu compreendeu essa realidade e eliminou uma das principais barreiras das compras online no país. Mas atenção: frete grátis significa entrega rápida? Nem sempre. Essa é outra história. Além disso, para fortalecer sua marca em um mercado onde ainda é pouco conhecido, a política de devolução prolongada de 90 dias reduz a resistência à compra e transmite confiança e segurança ao consumidor, tornando a experiência de compra mais atrativa e sem riscos.
Por fim, inspirado no sucesso do Pinduoduo na China, a Temu trouxe para o Brasil a inovação da gamificação da experiência de compra. Ainda pouco explorada pelos marketplaces, ela faz com que o ato de compra se transforma num momento de lazer. Com uma interface interativa e elementos gamificados, a plataforma torna a jornada do consumidor mais dinâmica e envolvente, conquistando um público diverso, abrangendo não só aqueles que gostam de videogame e/ou apostas.
“E” de estratégia – e o mindset da cultura chinesa
Entender a estratégia de um negócio significa compreender suas aspirações, as capacidades que possui para realizar tais aspirações, e as soluções que ele entrega ao mercado. A abordagem de Temu contrasta fortemente com a mentalidade estratégica que dominou o mundo dos negócios ocidentais por décadas. No início do século 20, Henry Ford revolucionou a produção com a linha de montagem, estabelecendo a padronização e a escala como pilares do sucesso. Frederick Taylor consolidou essa visão com a teoria da administração científica, que enfatizava a otimização de processos e o controle rigoroso. No entanto, a globalização, a digitalização e as mudanças nos hábitos de consumo desafiam a previsibilidade que é a base do “sistema” Ford-Taylor. Hoje, novos players demonstram que flexibilidade, personalização e agilidade não são apenas vantagens competitivas; são requisitos essenciais para prosperar no mercado.
Soma-se a isso um dos traços mais marcantes da mentalidade empresarial chinesa, que é a visão de longo prazo. Diferentemente de muitas empresas ocidentais com que estamos acostumados, que frequentemente priorizam retornos rápidos para atender às expectativas de acionistas, as companhias chinesas adotam uma estratégia pautada em paciência e resiliência. Essa abordagem permite que absorvam perdas iniciais enquanto conquistam participação no mercado de maneira gradual e sustentável. A Temu reflete essa filosofia. A plataforma investe pesadamente em subsídios, preços agressivos e um crescimento exponencial sem necessidade de lucratividade imediata. Em vez de buscar ganhos financeiros de curto prazo, seu foco está na expansão global e na fidelização do consumidor. O resultado é evidente – e assustador.
Para que uma estratégia seja bem-sucedida, a aspiração de entregar preços baixos precisa estar alinhada a um modelo de negócio que sustente sua execução. No caso Temu, sua estratégia de expansão global e domínio de mercado só é possível porque a empresa escolheu um modelo operacional que viabiliza essa proposta de valor. A plataforma aposta em compras recorrentes e crescimento acelerado, e estrutura suas operações para tornar essa estratégia viável. Seu modelo de logística crossborder é um elemento central no processo, eliminando intermediários e conectando diretamente fabricantes chineses a consumidores globais. A abordagem reduz significativamente os custos, permitindo que a plataforma ofereça preços imbatíveis e sustente sua estratégia de expansão em novos mercados.
No entanto, a Temu compreende que um modelo de negócio não pode ser estático quando a estratégia exige adaptação contínua. Inicialmente, todos os produtos nos novos mercados eram enviados da China, o que ajudou a manter os preços baixos, mas resultou em prazos de entrega mais longos. À medida que consolidava sua presença internacional, a empresa ajustou sua rede de valor, incorporando estoques locais em mercados-chave, como os Estados Unidos. Essa mudança estratégica reduz os tempos de entrega e melhora a experiência do consumidor, reforçando sua vantagem competitiva, e permitindo que a plataforma sustente seu crescimento exponencial sem comprometer a proposta de valor.
Para que uma estratégia de negócio funcione de maneira eficaz, a estratégia de marketing precisa estar alinhada com a de negócio. A aposta em um modelo de negócios baseado em logística crossborder, preços agressivos e um foco em crescimento acelerado exigem um marketing que vá além das abordagens tradicionais. Em vez de depender apenas de publicidade para atrair clientes, a Temu utiliza um marketing altamente orientado por efeitos de rede, garantindo que cada novo usuário impulsione a adesão de muitos outros.
A plataforma transforma seus consumidores em promotores ativos da marca, incentivando o compartilhamento de ofertas e a participação em desafios gamificados que oferecem descontos e benefícios. Esse mecanismo reduz os custos de aquisição de clientes e cria um ciclo virtuoso de crescimento exponencial, no qual o valor da plataforma aumenta conforme mais usuários se juntam a ela.
O alinhamento entre estratégia de negócio e estratégia de marketing foi o que impulsionou seu crescimento vertiginoso. Em apenas um ano, o tráfego aumentou em 11.000%, saltando de 1,2 milhão de visitas para 142,9 milhões em janeiro de 2025. Enquanto muitas empresas brasileiras ainda se apoiam fortemente na compra de anúncios analógicos e digitais como principal ferramenta de atração, a Temu desafia esse modelo, mostrando que, quando bem executado, o marketing baseado em engajamento, efeitos de rede e recomendações orgânicas pode ser mais poderoso, mais escalável… e mais econômico.
“I” de interações (gamificadas e personalizadas)
Seguindo a análise pela teoria AEIOU, no pilar de interações, examinamos como os negócios do futuro se conectam com suas comunidades, construindo narrativas que envolvem por meio de novos fluxos de comunicação. No caso de Temu, a escolha das suas personas foi estratégica: a plataforma direcionou suas interações para consumidores que gostam de jogos, compram online com frequência (produtos de baixo ticket) e são altamente sensíveis a preços. Definir com quem interagir é um dos primeiros passos de nossa abordagem de marketing do futuro, no qual se define que o mercado não é uma massa homogênea de consumidores. Em vez de tentar falar com todos, a Temu percebeu que comunidades bem segmentadas geram maior engajamento e lealdade, garantindo que sua comunicação ressoe entre aqueles que realmente são importantes para o crescimento da plataforma.
Ao escolher com quem interagir, também se estrutura a estratégia de engajamento para criar um ambiente envolvente e estimulante. E é aqui que a personalização por meio da gamificação se torna um elemento central na construção das narrativas da plataforma. Diferente do marketing tradicional, que interrompe o usuário com anúncios, a Temu aposta em uma abordagem conversacional e interativa — a experiência no app é o próprio convite para permanência – é a estratégia de marketing e é sua implementação. Com cores vibrantes, animações dinâmicas e elementos gamificados, a navegação se transforma em um jogo, tornando a compra mais divertida e envolvente.
À primeira vista, estética do site Temu pode parecer caótica para quem está familiarizado com interfaces mais limpas e lineares, mas é intencional – e funciona
À primeira vista, tal estética pode parecer caótica para quem está familiarizado com interfaces mais limpas e lineares. O excesso de informação, a variedade de produtos e a sensação de não saber por onde começar podem gerar estranhamento. Mas calma — tudo isso é intencional. À medida que o usuário se familiariza com o ambiente, é guiado por mensagens de descontos, roletas de prêmios e desafios que reforçam a sensação de aventura e recompensa.
No final, a experiência é construída para que o consumidor saia com a impressão de que sempre ganhou algo. Um exemplo claro disso é a oferta de brindes: o usuário pode escolher três produtos gratuitos, desde que compre pelo menos um item acima de um valor mínimo. O resultado? A percepção de que levou quatro produtos pelo preço de um — um mecanismo psicológico poderoso que reforça a fidelidade e incentiva novas compras.
”O” de operação, tendo inteligência artificial no centro
No pilar da operação, analisamos como dados, algoritmos e processos bem estruturados criam experiências fluidas e eficientes para o consumidor. Em marketplaces globais como a Temu, a operação não é apenas um suporte ao negócio; ela é um diferencial competitivo, garantindo que a plataforma funcione como um ecossistema altamente otimizado e escalável.
A inteligência artificial desempenha um papel central nesse processo, sendo usada desde a previsão de demanda até a personalização da experiência do cliente. Algoritmos avançados analisam dados em tempo real para antecipar tendências de consumo e ajustar a produção conforme as necessidades do mercado. Esse nível de segurança reduz desperdícios, otimiza estoques e permite que os fabricantes produzam apenas o que será vendido, evitando custos com excesso de estoque. Além disso, IA processa o comportamento dos usuários, histórico de compras e opções para oferecer recomendações personalizadas, impactando diretamente a taxa de conversão, que pode crescer até 30% com essa abordagem.
Porém nenhuma operação de marketplace seria eficiente sem uma logística robusta. Diferentemente dos modelos tradicionais, a Temu não tem lojas próprias dentro da plataforma — sua força está na integração de 80 mil fornecedores dentro de um ecossistema orientado pela demanda do consumidor. Os fornecedores enviam suas mercadorias para centros logísticos na China, e a Temu assume a responsabilidade pelo restante do processo, garantindo uma experiência de compra simplificada para o usuário.
China anunciou um novo trajeto aéreo como reflexo direto da expansão da Temu
Para sustentar essa operação de massa e acompanhar o crescimento acelerado, foram necessários investimentos estratégicos em infraestrutura logística. A China anunciou um novo trajeto aéreo conectando a cidade de Zhengzhou às cidades americanas de Atlanta e Dallas, um reflexo direto da expansão da Temu. No ano que terminou em maio de 2024, o Aeroporto Internacional Xinzheng, em Zhengzhou, registrou um crescimento de 18,6% devido ao aumento do volume de carga enviada pela plataforma.
“U” de unificação, com marketing sendo o hub unificador
No último pilar, de unificação, analisamos como a arquitetura do negócio pode transformar uma empresa em uma verdadeira organização em rede. No caso da Temu, surge uma questão fundamental: trata-se de um marketplace ou, na realidade, de uma plataforma de marketing?
Um dado reforça essa reflexão: a maior parte da receita de Temu não vem das vendas diretas aos consumidores, mas de serviços de publicidade. Isso revela um modelo de negócio em que o marketing não é apenas uma ferramenta promocional; ele é o coração da operação, conectando e integrando todas as dimensões da plataforma.
A PDD Holdings, controladora do Temu, domina essa estratégia com maestria. No último trimestre, a empresa gerou impressionantes RMB 49,35 bilhões (US$ 6,98 bilhões) em publicidade e outros serviços, um valor equivalente a quase metade do faturamento da Amazon com anúncios no mesmo período. Esse dado reforça como a verdadeira força da Temu não está no comércio de produtos em si, mas na monetização da atenção dos usuários e no papel estratégico com que atua dentro do ecossistema digital.
A unificação entre marketplace e plataforma de marketing cria um modelo altamente escalável, onde o crescimento não depende apenas do volume de vendas, mas da capacidade de engajar fornecedores e consumidores dentro de um ambiente arquitetado para maximizar interações e gerar receitas através da visibilidade dos produtos. Essa integração é o que diferencia Temu dos marketplaces tradicionais e o posiciona como uma potência dentro da nova era do comércio digital.
Desafios, impactos e o futuro da Temu no Brasil
A Temu, apesar do rápido crescimento no Brasil, ainda enfrenta um caminho incerto rumo a solidez. A desaceleração de pedidos, já observada nos EUA, é uma possibilidade. A sustentabilidade de seus investimentos bilionários em marketing (incluindo subsídios) também é questionável. E práticas trabalhistas, de competitividade e respeito à propriedade intelectual continuam sem respostas claras. Sem falar na potencial guerra comercial do contexto pós-tarifaço do governo Donald Trump.
Para uma análise completa, é crucial acompanhar de perto sua evolução no mercado brasileiro, observando seus resultados, sua adaptação às regulamentações locais e o impacto na economia nacional. Infelizmente, a falta de transparência em seus dados financeiros, como receitas e despesas de marketing, dificulta uma análise precisa de sua performance e sustentabilidade a longo prazo.
Certo é que a empresa pode esbarrar em desafios regulatórios significativos no País. Embora opere sob o programa “Remessa Conforme”, que isenta de imposto de importação produtos de até US$ 50, a incidência do ICMS e a complexidade da legislação brasileira podem impactar seus custos e lucratividade.
Já a pressão competitiva gerada por sua estratégia agressiva de preços baixos traz um alerta para indústrias e varejistas locais, especialmente pequenas e médias empresas (PMEs), e a dependência de produtos importados para o Brasil. Esse cenário exige uma reação do mercado brasileiro em torno de estratégias de diferenciação, otimização de logística e cooperação entre fornecedores. Um aprendizado difícil para o varejo brasileiro, mas necessário.