Se a inteligência artificial é hoje vista como a revolução dos negócios, uma força rival — às vezes ainda mais transformadora — já está remodelando empresas, mercados e, principalmente, carreiras: a internacionalização das empresas chinesas.

Durante décadas, essa influência se deu de maneira indireta. Produtos com preços imbatíveis, fabricados na China, chegaram a todos os mercados do mundo, forçando a reinvenção de milhares de empresas no Brasil e em praticamente todos os setores globais. A competição se dava via custo, eficiência fabril e escala.

Agora, essa influência toma uma nova forma — mais direta, mais estruturada e muito mais profunda. As empresas chinesas não vêm mais apenas vender seus produtos. Elas vêm operar no Brasil. Contratar. Liderar. Tomar decisões. Controlar mercados. Redesenhar setores inteiros.

E este não é apenas um fenômeno econômico. É uma transformação de poder, de cultura empresarial e, sobretudo, de paradigma profissional.

O impacto existencial que uma empresa chinesa pode ter sobre o seu emprego, a sua empresa — ou até o seu próprio negócio — pode ser tão grande, ou maior, do que da IA. Inclusive porque, dado o seu desenvolvimento na China, a IA é estratégica até para as empresas tradicionais chinesas, indo muito além dos prompts de ChatGPT.

O que parecia restrito a big techs agora faz parte do dia a dia de indústrias, fabricantes, varejistas, operadores logísticos, empresas de alimentação e serviços.

Uma tendência global — e, agora, inevitável no Brasil

Esse fenômeno não é novo. Ele já moldou mercados inteiros em diferentes regiões do planeta.

Na Ásia, empresas como BYD, Meituan, TikTok Shop e Shein dominam setores que vão de mobilidade urbana a social commerce, passando por delivery, logística urbana e automóveis elétricos. O impacto não é apenas digital. Ele é físico, territorial e cultural.

Na África, gigantes como Huawei, ZTE, State Grid e CRCC lideram setores estruturantes: telecomunicações, geração e transmissão de energia, mineração e construção pesada. Em muitos países, a presença econômica chinesa supera a de qualquer outra potência.

Na América Latina, o movimento já é visível em países como Colômbia, Chile e México, onde empresas como Chery, Huawei, BYD, AliExpress e TikTok não apenas vendem, mas possuem operações locais robustas — com times, estruturas físicas e estratégias adaptadas (ou em processo de adaptação) às realidades locais.

Na Europa e nos EUA, as tensões geopolíticas impuseram restrições à expansão de empresas chinesas em setores sensíveis — como telecomunicações e energia. Mas, mesmo assim, plataformas como Temu e TikTok Shop tornaram-se concorrentes diretos da Amazon. Elas transformaram o conceito de e-commerce, integrando social commerce, algoritmos de recomendação, precificação dinâmica e cadeias logísticas globais — algo que os players incumbentes simplesmente não conseguem replicar na mesma velocidade.

Essas restrições fizeram com que mercados considerados geopoliticamente neutros, como o Brasil, ganhassem prioridade absoluta no mapa estratégico das empresas chinesas. Afinal, o Brasil oferece uma combinação quase única de vantagens:

  • Mercado grande, digitalizado e com apetite por consumo.
  • Ambiente geopoliticamente amigável para a China, sem barreiras políticas significativas.
  • Baixa resistência cultural do consumidor a produtos e marcas de origem chinesa.

O anúncio recente da gigante de fast food Mixue, durante a visita do presidente Lula à China, mostra que não existem limites. Em breve, você poderá não só comer sorvete de uma marca chinesa, mas também trabalhar para que ela vença as grandes redes americanas.

O impacto direto — e imediato — na sua carreira

Seu chefe poderá ser um chinês. Seu sócio, seu investidor, seu cliente, também. Isso não é uma hipótese distante. É uma tendência inevitável, que já começa a se materializar em diversos setores.

O que isso significa, na prática, para sua carreira, para sua trajetória profissional, para seu negócio?

O ritmo de trabalho é outro

Decisões podem ser lentas na fase de entrada, principalmente em mercados desconhecidos, por cautela, necessidade de entendimento regulatório e análise de risco. Mas, uma vez decidido, o ritmo é implacável. A execução é acelerada. O crescimento é exponencial.

Cultura orientada a dados, pragmatismo e eficiência

Toda decisão precisa ser suportada por dados. O espaço para discussões teóricas, análises infinitas e reuniões sem desfecho simplesmente não existe. A lógica é clara: planeje rápido, execute mais rápido ainda. Corrija no caminho, se for preciso.

O papel do profissional sombra

Se você já se deparou com um profissional que acompanha tudo — de reuniões a decisões operacionais — sem uma função formal clara, você provavelmente está vendo um fenômeno muito comum nas operações chinesas. Esse papel não é vigilância. É uma ponte cultural. Uma interface viva entre a matriz na China e a operação no Brasil.  É esse profissional que garante que o fluxo de informação, decisão, valores e prioridades esteja alinhado.

Mudam os critérios de sucesso

O que pesa não é mais sua senioridade, seu tempo de casa ou seu diploma. O que pesa é sua capacidade de entregar. De resolver. De fazer. É uma cultura extremamente orientada a metas, resultados e eficiência. A meritocracia é operacional, e não simbólica.

Desafios operacionais muito concretos

  • Diferença de fuso: calls regulares às 22h, meia-noite ou 6h da manhã são parte da rotina.
  • Estilo direto: feedbacks são objetivos, conversas longas são raras. Existe foco total na resolução de problemas.
  • Alta exigência: erros são tolerados — desde que sejam corrigidos imediatamente e não se repitam.

Eles também estão aprendendo — e isso abre espaço para você

O processo é bilateral. Se os brasileiros precisam aprender a trabalhar sob a lógica chinesa, as empresas chinesas também estão em processo de entender o Brasil e isso inclui: 

  • A informalidade como elemento central do ambiente de negócios brasileiro.
  • A importância das relações pessoais — que, embora diferente do guanxi chinês, também moldam decisões.
  • O improviso como competência, e não como falha de planejamento.
  • A necessidade de navegar em uma burocracia que nem sempre é escrita, mas que funciona a partir de regras não documentadas e práticas informais.

Esse movimento gera uma enorme demanda por profissionais capazes de operar nesses dois mundos. Pessoas que entendem tanto o idioma da cultura brasileira quanto o idioma invisível da gestão chinesa — que vai muito além da língua.

O mindset chinês

No paper Desvendando os negócios da China: pontes, caminhos e desvios, Silvio Meira, professor e cientista-chefe da TDs.company, descreve os pilares culturais que moldam os negócios chineses:

  • Guanxi (关系) → as redes de relacionamento que constroem confiança, reciprocidade e estabilidade nas relações de negócios.
  • Mianzi (面子) → o conceito de “salvar a face” e preservar a reputação, que regula a diplomacia nas interações profissionais.
  • Wǔ Xíng (五行) → os cinco elementos — madeira, fogo, terra, metal e água — uma filosofia que interpreta o mundo como um sistema dinâmico, onde tudo está interconectado e precisa de equilíbrio.
  • Mentalidade coletiva: decisões são tomadas buscando harmonia e ganhos mútuos, muitas vezes evitando confrontos diretos — o oposto da cultura ocidental competitiva e individualista.

Esses elementos explicam por que funções como profissional sombra fazem sentido. Elas não são burocracia adicional. São mecanismos de coesão, alinhamento e fluidez em ecossistemas culturais muito distintos.

Do Brasil como mercado ao Brasil como hub global

O roteiro está dado. Assim como Nestlé, Unilever, Siemens, Bosch, Samsung e IBM transformaram o Brasil em hubs estratégicos para a América Latina (e até para outros mercados), o mesmo está acontecendo com as empresas chinesas.

Por enquanto, esse papel é liderado pelos escritórios no México, que funciona como hub latino-americano para muitas operações chinesas. Mas isso está mudando rapidamente. O tamanho do mercado brasileiro, somado à sua relevância econômica, cultural e logística, faz do Brasil o próximo hub natural. Veremos:

  • Centros de excelência em logística, marketing, desenvolvimento e operação.
  • Uma geração de executivos brasileiros bilíngues culturais — não só no idioma, mas na capacidade de navegar pelos códigos operacionais da China e do Brasil.

E o que isso significa na prática

A internacionalização das empresas chinesas, combinada com IA operacionalizada, não é apenas uma mudança de mercado. É uma mudança estrutural nas regras da economia, das empresas e das carreiras.

Seu chefe poderá ser um chinês. E o que isso significa? 

O futuro da sua carreira não será determinado só pela sua competência técnica, mas pela sua capacidade de operar nesse novo eixo cultural, econômico e empresarial. Quem entender isso antes, irá liderar essa transformação. Quem ignorar, ficará pelo caminho.

No próximo artigo, vamos discutir o que significa, para o Brasil, a chegada das empresas chinesas de alta capacidade tecnológica — sejam elas big techs ou não.

In Hsieh é um dos pioneiros do ecommerce no Brasil e principal especialista em negócios digitais entre Brasil e China. Atualmente, acelera negócios chineses no Brasil, com destaque para o social live commerce em parceria com Tiktok Shop, principal lançamento do mercado brasileiro em 2025. Além disso, é parceiro oficial do Alibaba Global Initiative, integrou a equipe que criou o Submarino em 1999 e participou da entrada da Xiaomi na América Latina em 2014.