Ao longo dos anos, as economias da China e do mundo passaram por mudanças drásticas, tanto do ponto de vista financeiro como do tecnológico. Primeiramente, o surgimento da economia digital e o desenvolvimento da tecnologia inteligente – que trouxeram novos produtos, serviços e modelos de negócios – coincidiram com a rápida desaceleração na taxa de crescimento do PIB da China.

Em segundo lugar, surgiram novos fenômenos econômicos. Um exemplo: é lógico supor que, com o progresso tecnológico e o desenvolvimento de novos setores, produtos e modelos de negócios, veríamos um crescimento mais rápido no investimento em ativos fixos. 

Mas o contrário aconteceu na China, com as taxas de crescimento anuais caindo para 5%, em comparação com 20% uma década atrás. Teoricamente, o progresso tecnológico também deveria aumentar a produtividade; mas, novamente, não houve um aumento rápido na produtividade total dos fatores – a relação entre a produção em termos reais e os insumos envolvidos em sua produção – e, comparado com 20 anos atrás, a taxa de crescimento da produtividade total dos fatores na verdade diminuiu.

Novo incrementalismo

Quando falamos em mudanças na economia, o processo de industrialização rápida está basicamente chegando ao fim, e a taxa de crescimento de setores tradicionais está desacelerando. Em termos das leis da economia, o gasto com consumo final é o principal indicador de desenvolvimento econômico.

A Lei de Engel afirma que, quanto maior a renda em uma economia, menor deve ser a participação do gasto com alimentos. Por extensão, quanto maior a renda, menor deve ser a participação da demanda rígida (também conhecida como setor de estoque) no PIB total. Na China, há sinais de que muitas áreas de setores tradicionais estão se tornando saturadas com capacidade e há relativamente poucas oportunidades de expansão de investimentos com espaço limitado para desenvolvimento incremental.

Existem, obviamente, oportunidades disponíveis. Mas, para um maior desenvolvimento, precisamos encontrar outras oportunidades de melhoria incremental – geralmente por meio de inovação de produtos – para agir como motores de crescimento. O progresso tecnológico, a digitalização e o desenvolvimento inteligente dentro da economia do país ao longo dos anos trouxeram muitas dessas melhorias, incluindo novos modelos de negócios, produtos, serviços – e atenderam às demandas dos consumidores em constante mudança.

Sobre o livro

Um novo campo econômico está se desenvolvendo na torrente avassaladora da transformação econômica da China, e surgem novas tecnologias, produtos e setores – impulsionados especialmente por tecnologias inteligentes e digitalização.

Nessa nova era, os setores corporativo, financeiro e até político precisam urgentemente de um novo conjunto de teorias econômicas para interpretar os diversos fenômenos e os problemas criados por eles. Essas teorias também podem ajudar na compreensão e na previsão de novas tendências de desenvolvimento econômico e comercial, além de guiar decisões específicas do setor sobre investimento científico e racional, produção, P&D, marketing e desenvolvimento industrial.

Por muito tempo, a economia tem sido uma disciplina que estuda as leis de operação econômica e a alocação de recursos com a premissa da escassez de recursos. De acordo com essa suposição, uma vez que os recursos são limitados, e a produção precisa consumir recursos, a produção é limitada pela oferta, criando a escassez de produtos.

Mas na nova era econômica, cada vez mais digitalizada, isso está mudando rapidamente. Alguns produtos continuam limitados na produção e oferta, mas há também um número crescente de itens que não são restringidos por esses limites. O sistema operacional Windows da Microsoft, o iOS da Apple, o WeChat da Tencent e o mecanismo de busca Baidu são exemplos típicos de produtos de fornecimento ilimitado.

Assim como não é convincente usar a mecânica de Newton para explicar o movimento das partículas, é ainda mais impreciso analisar e entender o conceito da economia de suprimento ilimitado usando as estruturas econômicas tradicionais baseadas em ideias de recursos e oferta limitados.

Portanto, a importância de estabelecer um novo sistema teórico que subverta o pensamento econômico tradicional é auto evidente, especialmente em um momento em que a economia inteligente e a digital (e outros novos modelos econômicos e de negócios) estão em ascensão, e os fornecimentos ilimitados estão se tornando mais comuns.

Este é um trecho do prefácio de Limitless supply: New economy in the digital era, livro que é o resultado de vários anos de reflexão e revisão pelo autor, e analisa as características básicas dos produtos de fornecimento ilimitado, comparando-os com a produção e a operação dos produtos de fornecimento limitado. No que se refere ao desenvolvimento econômico atual da China, a obra argumenta que a contribuição da nova economia, incluindo seu progresso científico e tecnológico, tem sido seriamente subestimada.

O objetivo central do livro é construir uma estrutura teórica preliminar, simples, mas relativamente completa, para a economia de fornecimento ilimitado, e usá-la para interpretar fenômenos importantes na nova economia e explicar o comportamento das empresas que operam em seus setores.

Isso inclui a análise das questões de demanda e precificação para produtos de fornecimento ilimitado e a discussão sobre modelos de receita e benefícios derivados, para ajudar a entender como tais produtos – como software, dados e jogos online – podem ser precificados de maneira equilibrada. Também visa resolver o mistério de como tantos desses novos produtos podem operar com um modelo de receita zero ou até mesmo de receita negativa.

Além disso, o livro aponta as diferenças essenciais entre fabricantes de produtos de fornecimento ilimitado e seus homólogos de fornecimento limitado, em termos de modo e taxas de crescimento, estratégias competitivas e a importância da fidelidade dos usuários.

Setores emergentes são relativamente ricos em oportunidades incrementais, mas têm poucos ativos, com altos níveis de intangibilidade. Esses setores não exigem grandes investimentos em ativos fixos, como fábricas ou equipamentos, portanto a presença de tais investimentos, que desempenharam um papel no crescimento rápido das indústrias tradicionais, está diminuindo.

Mas há dois requisitos para que esses novos setores sejam motores econômicos de sucesso para a China:

  • Substituição científica e tecnológica: em áreas centrais, é necessário que a China preencha as lacunas em sua base de conhecimento e desenvolva tecnologias originais para evitar ser limitada por grandes potências globais.
  • Demanda do consumidor: se a China quiser ser capaz de contar com sua economia doméstica, a demanda do consumidor deve ser aumentada para criar mais capacidade interna. Sem o impulso do consumo, mais investimentos inevitavelmente resultarão em excesso de capacidade. Além disso, se o consumo não aumentar, os investimentos das empresas se tornarão cada vez mais economicamente ineficientes e, em última instância, as empresas perderão o incentivo para investir.

Portanto, a atualização do consumo, além da demanda, deve ser um foco importante.

Do finito ao infinito

Muitos desses desafios macroeconômicos estão relacionados ao conceito de oferta ilimitada, que deve atuar como o princípio central de qualquer novo pensamento econômico. Mas o que exatamente é oferta ilimitada?

Em abril de 2023, o Comitê Central do Partido e o Conselho de Estado emitiram um documento propondo melhorias no mercado de fatores de produção, historicamente focado em investimentos empresariais em terra, capital e trabalho. Hoje, há uma necessidade crescente de adicionar investimentos em tecnologia inteligente e digitalização a essa lista.

As limitações de oferta são a principal diferença entre o mercado tradicional de fatores de produção e essas novas adições. Enquanto o valor da terra, o capital e o trabalho continuarão a depreciar ou se esgotar, os dados, uma vez produzidos, existirão para sempre e podem ser reutilizados várias vezes, se não indefinidamente. 

Devido a essa oferta ilimitada, o custo de conversão desses elementos em um produto é mínimo; não há risco de escassez de oferta nem de superprodução. Por exemplo, é impossível haver um excesso de softwares como o Microsoft Office. Da mesma forma, o WeChat e outros aplicativos podem ser fornecidos pela empresa a qualquer usuário que precise.

Enquanto o valor da terra, o capital e o trabalho continuarão a depreciar ou se esgotar, os dados, uma vez produzidos, existirão para sempre e podem ser reutilizados várias vezes, se não indefinidamente

Isso é fundamentalmente diferente da oferta limitada de carros, casas, pães e leite na era tradicional. Por essa razão, as empresas passarão por mudanças radicais na precificação de produtos, no design de modelos de negócios, na estratégia competitiva e no crescimento corporativo. Essas mudanças terão um impacto direto em toda a macroeconomia, afetando as estatísticas do PIB.

Desafiando o padrão

A ideia de oferta ilimitada é uma completa inversão do pensamento econômico tradicional, desafiando os pressupostos que fundamentam essa disciplina. Não é mais possível tomar decisões baseadas na suposição de escassez, pois os dados e as tecnologias digitais, sejam como fator ou como produto, não são escassos. 

A oferta ilimitada também desafia a ideia de que as forças de mercado, em última instância, colocam a oferta e a demanda em equilíbrio, já que não pode haver excedente, no sentido original do termo, nem problemas de superprodução.

Além disso, as teorias econômicas tradicionais frequentemente utilizam a função de produção para caracterizar a relação entre insumos e produção, que sustenta tanto o crescimento econômico das empresas como o nacional. A teoria do crescimento econômico é baseada em uma determinada função de produção no nível macroeconômico e no das empresas. 

Produtores de bens finitos, independentemente da força da demanda, precisam aumentar sua capacidade produtiva para crescer. Já os produtores de bens de oferta ilimitada não possuem uma função de produção simples e, como a oferta do produto é infinita, o crescimento depende inteiramente da expansão da demanda. Isso significa que a teoria original de crescimento empresarial, que embasa a teoria do crescimento econômico, também precisa ser reconsiderada.

Intangíveis e a ‘assetization’

A oferta ilimitada também exigirá grandes mudanças na relação entre empresas, mercados financeiros e consumidores. Muitos produtores de bens de oferta ilimitada são considerados empresas “asset-light” – com poucos ativos fixos, como equipamentos –, mas com uma grande quantidade de ativos intangíveis. Esses ativos intangíveis se tornarão uma parte essencial do desenvolvimento da nova economia e também ajudam a explicar a queda na taxa de crescimento dos investimentos em ativos fixos.

Além disso, o efeito de escala do crescimento na oferta ilimitada se reflete principalmente no número de usuários, tornando o consumidor o recurso mais crítico para essas empresas e, portanto, o principal ativo corporativo.

Nos setores de oferta limitada, os clientes geralmente realizam transações únicas com os fornecedores. Por outro lado, as empresas de oferta ilimitada e seus usuários estão desenvolvendo relações mútuas de longo prazo. Ao usar um aplicativo, os usuários constantemente geram diversos valores e receitas para o fornecedor. 

O efeito de escala do crescimento na oferta ilimitada se reflete principalmente no número de usuários, tornando o consumidor o recurso mais crítico para essas empresas e, portanto, o principal ativo corporativo.

A monetização do tráfego ocorre quando a empresa utiliza seus clientes para gerar receita. Esse tipo de consumidor possui características particulares, e aproveitá-los corretamente é chamado de assetização do cliente. Quando bem feita, pode ter impacto significativo na natureza dos negócios da nova economia.

Transformação financeira

O aumento da intangibilidade dos ativos e a assetização dos clientes terão um impacto significativo nos modelos de avaliação financeira. Se o cliente agora é um ativo, então devemos considerar um novo modelo de avaliação financeira. Aqui entra o modelo de “queima de dinheiro” como uma ferramenta de investimento, onde as empresas podem “queimar dinheiro” para adquirir clientes, algo semelhante a um negócio tradicional investindo para adquirir terrenos.

É claro que a relação entre o custo de aquisição de clientes e o valor gerado por eles deve ser levada em conta. Empresas com ativos leves ou intangíveis não possuem muitos bens para oferecer como garantia no sentido tradicional, o que limita suas opções de empréstimos e financiamentos. Assim, as empresas da nova economia e as inovações tecnológicas dependem mais do financiamento por meio de capital próprio.

Nesta nova era econômica, em que os ativos intangíveis se tornam os principais motores do crescimento e os clientes se transformam em ativos, precisamos de novos métodos contábeis para fornecer dados mais precisos para a contabilidade econômica nacional.

Oportunidades ilimitadas

Está claro que os novos modelos de negócios, impulsionados pela crescente intangibilidade e oferta ilimitada de ativos, tornam a contabilidade econômica mais complexa. Quando combinamos isso com os efeitos da substituição de produtos trazida pela inovação tecnológica (como os celulares substituindo câmeras e filmes), parece evidente que o impacto dessas empresas da nova era na economia tem sido amplamente subestimado.

Não há dúvidas de que existe uma oportunidade para uma mudança na teoria econômica, a fim de se adaptar à natureza rapidamente evolutiva de um mundo cada vez mais marcado pela oferta ilimitada.

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Professor de Finanças, Reitor Associado de Programas de Educação Executiva, Diretor Acadêmico Executivo do Programa de MBA Executivo e Presidente da Fundação Educacional CKGSB, Escola de Pós-Graduação em Negócios Cheung Kong (CKGSB).