Há quem considere o três um número mágico, mas o governo chinês está apostando no 300 – a quantidade de reformas que pretende implementar nos próximos cinco anos. Apresentadas no encontro do Comitê Central do Partido Comunista em julho de 2024 – a Terceira Plenária –, as reformas abrangem desde economia e segurança nacional até questões culturais e sociais.
A nova visão da reforma econômica da China se baseia em uma estratégia de crescimento econômico e de estabelecer uma posição mais forte no cenário global. Nessa jornada, o país vai enfrentar desafios significativos, que incluem possíveis confrontos com o Ocidente e a limitação do crescimento econômico em favor da segurança nacional e do controle estatal.
O plano de reformas surge em um momento crucial para a economia chinesa, que enfrenta desequilíbrios estruturais, baixa confiança e tensões geopolíticas intensificadas. Ainda há muitas dúvidas sobre os detalhes, a implementação e os impactos dessas mudanças na economia, na política externa, na sociedade e no setor de pesquisa e desenvolvimento.
“Quando ouço a palavra reforma, o que isso realmente significa?”, questiona Philippe Le Corre, pesquisador sênior do Centro de Análise da China do think tank americano Asia Society Policy Institute e autor de China’s Offensive in Europe. “Vivi os anos da política de portas abertas da China nos anos 1980 e 1990 e a primeira década do século 21. Os chineses estavam mais entusiasmados e eram muito mais empreendedores do que agora. Há uma sensação de que o ambiente de negócios não é tão positivo quanto antes.”
Controle x crescimento
A ênfase em um desenvolvimento econômico de alta qualidade – com investimento em setores inovadores e estímulo ao consumo – foi o tema central da Terceira Plenária. O encontro também deixou clara a necessidade de:
- Fortalecer a resiliência e a segurança das cadeias de suprimentos industriais diante do aumento das tensões geopolíticas.
- Reforçar a importância do setor privado.
- Melhorar o sistema de pensões.
- Aumentar a eficiência das empresas estatais.
- Adotar medidas para estimular o consumo doméstico.
A economia digital será essencial para impulsionar um novo ciclo de crescimento, e o governo chinês tem ambições de expandi-la. Em abril de 2024, lançou um plano de ação de três anos para atrair e desenvolver talentos digitais, seguido por um roteiro, divulgado em agosto, para promover o desenvolvimento de baixo carbono das indústrias digitais.
Foco em novas forças produtivas de qualidade
No centro da busca da China por uma economia mais resiliente e voltada para o futuro está a criação de “novas forças produtivas de qualidade”. O conceito geralmente se refere à manufatura de alta tecnologia, às indústrias de energia limpa e às tecnologias avançadas que se tornarão fundamentais para a economia do futuro.
Essa estratégia representa uma mudança na tradicional política industrial da China, com o objetivo de transformar o país em um líder global por meio de avanços tecnológicos e da liderança em setores estratégicos, como energia limpa e transporte eletrificado.
“As novas forças produtivas de qualidade estão desvinculadas dos antigos modelos de crescimento econômico e das trajetórias tradicionais de desenvolvimento produtivo”, afirma Bruce Pang, economista-chefe e chefe de pesquisa da JLL (empresa americana do setor de serviços imobiliários) na Grande China.
“Elas representam a inovação que vai além dos limites convencionais. Além de enfatizar o uso de tecnologia de ponta para remodelar os ecossistemas industriais, essa estratégia também busca aproveitar o papel da China como potência global em manufatura e exportação, demonstrando sua ambição de subir na cadeia global de valor.”
Rory Green, economista-chefe para a China na consultoria inglesa GlobalData TS Lombard, aponta que a China vive “um impulso maior para novas formas de manufatura”. “Modelos de produção just-in-time, pioneirizados pelo Japão, estão perdendo espaço.Vemos surgir um novo modelo de produção automatizado, liderado por tecnologia da informação, com uma força de trabalho altamente móvel e capaz de gerar alta rotatividade.”
Os desafios econômicos de hoje

A guinada da China para uma economia impulsionada pela inovação ocorre em meio a um cenário macroeconômico cada vez mais desafiador. O país enfrenta problemas como o colapso do mercado imobiliário, quedas nos mercados de ações e títulos, aumento da dívida dos governos locais, desafios comerciais, baixa confiança dos investidores e demanda fraca dos consumidores.
A relutância dos consumidores em gastar continua sendo a maior restrição ao crescimento de curto prazo. Uma pesquisa realizada pelo Banco Popular da China no segundo trimestre de 2024 revelou que 61,5% dos moradores das cidades queriam economizar mais, enquanto apenas um quarto desejava aumentar o consumo.
As recentes dificuldades econômicas da China levantaram questões sobre se a demanda fraca é um fenômeno cíclico ou se os problemas são mais profundos. Em maio, Huang Yiping, economista influente e membro do comitê de política monetária do Banco Popular da China, afirmou que o país está passando de uma economia “fácil de aquecer, difícil de resfriar” para uma “fácil de resfriar, difícil de aquecer”.
Houve apelos para que os formuladores das políticas públicas mudem sua estratégia, que prioriza o investimento e negligencia o consumo. As propostas variam desde a definição de uma meta obrigatória de inflação até o aumento dos gastos para impulsionar o consumo. No entanto, fornecer maior renda para estimular a economia de consumo também pode elevar os custos trabalhistas, afetando a competitividade global do país.
A aposta de Pequim nas novas forças produtivas de qualidade também envolve riscos. Embora o investimento chinês em tecnologias como baterias e energia renovável tenha garantido uma posição de liderança nesses setores, o mesmo nível de sucesso não foi alcançado em áreas críticas, como a de semicondutores.
A confiança também está em baixa em todos os setores. Consumidores, investidores e empresas privadas estão reduzindo seus gastos. Esse pessimismo se refletiu no Índice de Condições Empresariais da CKGSB, que caiu para 48,8 em julho de 2024, o nível mais baixo no ano, até então, e o segundo mês consecutivo abaixo do limite de confiança de 50. A crise também se agravou com o desemprego juvenil: em julho, 17,1% dos cerca de 100 milhões de chineses entre 16 e 24 anos estavam desempregados, um aumento de aproximadamente 4% em relação ao mês anterior.

O pessimismo é mais evidente no setor imobiliário, que segue em crise mais de três anos após o colapso da incorporadora Evergrande. A recessão sem precedentes no setor arrastou a economia para baixo, deixando cerca de 20 milhões de casas inacabadas e até 60 milhões sem compradores. Embora Pequim tenha rejeitado um plano de resgate habitacional de ¥ 6,93 trilhões (US$ 977 bilhões) proposto pelo Fundo Monetário Internacional, o governo reiterou, na Terceira Plenária, a necessidade de garantir uma ampla oferta de moradias acessíveis e para aluguel, em vez de focar no setor imobiliário comercial.
No entanto, não houve detalhes sobre como essa mudança seria implementada, nem sobre quais medidas seriam adotadas para lidar com o declínio atual do mercado imobiliário. Até agora, a abordagem de Pequim para conter a crise imobiliária tem sido uma série de medidas experimentais e incrementais. Em maio, o Banco Popular da China anunciou a disponibilização de ¥ 300 bilhões em empréstimos baratos para ajudar empresas estatais locais a comprar imóveis encalhados e convertê-los em moradias acessíveis, mas os resultados ainda são limitados.
A nova abordagem econômica da China também precisará enfrentar desafios demográficos históricos, como o envelhecimento da população e a queda da taxa de natalidade, que já reduziram a população em idade ativa (de 16 a 59 anos) em mais de 60 milhões desde seu pico em 2011, chegando a 875,56 milhões em 2022.
Desconfiança externa
Enquanto Pequim promove as novas forças produtivas de qualidade como o futuro da economia, o país precisará lidar com um Ocidente cada vez mais cauteloso em relação aos produtos chineses em segmentos de rápido crescimento. O domínio da China em setores estratégicos preocupa outros governos. O Canadá, por exemplo, seguiu os passos dos Estados Unidos e da União Europeia e impôs altas tarifas sobre a importação de veículos elétricos chineses.
O ceticismo em relação às intenções de Pequim se estende a países que antes viam a China como cliente – e agora a enxergam como concorrente. “O apoio da China ao crescimento econômico global ao longo da última década desapareceu”, lamentou o ministro das Finanças do México, Rogelio Ramírez de la O, em julho de 2024. “A China vende para nós, mas não compra de nós, e isso não é um comércio recíproco.”
Segundo Le Corre, essa desconfiança também decorre da política externa chinesa, que se tornou mais assertiva nos últimos anos. “Desde 2020, a política externa da China infelizmente não é vista de forma positiva no Ocidente”, afirma. “Por exemplo, todos os benefícios da Iniciativa do Cinturão e Rota [que liga a Ásia com a África e a Europa] desapareceram na Europa. A situação pode ser diferente nos países em desenvolvimento, mas quantos governos realmente apoiam totalmente a ascensão global da China?”
Liderando o pelotão de frente
Apesar desses desafios, a economia da China ainda deve, segundo projeções oficiais, crescer bastante. Há motivos para otimismo, como o progresso da China em tecnologias consideradas essenciais para o desenvolvimento econômico futuro.
A energia verde é um exemplo. A China já controla 80% do mercado global de painéis solares, domina 60% do mercado de turbinas eólicas e produz três quartos de todas as baterias de íons de lítio. Com a capacidade instalada de energia solar e eólica no país projetada para alcançar 1.200 GW até 2025 – cinco anos antes do previsto –, a China continuará sendo uma superpotência em energia limpa, fornecendo a base de manufatura para a expansão das energias renováveis no resto do mundo. O país também já lidera a produção de hidrogênio verde, um combustível não poluente gerado a partir de fontes renováveis, considerado essencial para reduzir as emissões em setores industriais como aço, cimento e petroquímica.
A maior implementação de IA em setores como automotivo, transporte e logística, manufatura, software empresarial, saúde e ciências da vida pode gerar US$ 600 bilhões em novo valor econômico anualmente para o país.
Philippe Le Corre
Enquanto isso, as indústrias de veículos de nova energia da China devem contribuir com até 4,5% a 5% do PIB (produto interno bruto) até o final desta década, refletindo seu enorme potencial de crescimento à medida que os consumidores adotam cada vez mais os veículos elétricos, de acordo com a Moody’s Investors Service.
Outros pontos positivos que ajudarão a China a superar seus desafios são a digitalização e a adoção da inteligência artificial. Segundo a consultoria americana McKinsey, a maior implementação de IA em setores como automotivo, de transporte e logística, manufatura, software empresarial, saúde e ciências da vida pode gerar US$ 600 bilhões em novo valor econômico anualmente para o país.
De olho no “Império do Meio”
À medida que a China busca recalibrar sua economia para setores de alta produtividade, medir o sucesso dessa estratégia exigirá uma análise detalhada não apenas do crescimento do PIB, mas também da confiança e da direção geral das políticas.
A prioridade dos formuladores de políticas públicas será expandir a inovação tecnológica e as novas forças produtivas de qualidade, além de manter o crescimento do PIB entre 4% e 5%, com o objetivo de estruturar a economia sem grandes rupturas. No entanto, o consumo também é um indicador-chave a observar.
“Eu focaria mais na ponta do consumo do que Pequim. Ver a taxa de poupança cair e a participação do consumo voltar a subir indicaria mais confiança e emprego”, afirma Green. “Para mim, esse seria o sinal mais animador.”
A abordagem centralizada e estatal da China também precisará ser monitorada para garantir que Pequim cumpra sua promessa de proporcionar um ambiente equitativo para empresas privadas e estrangeiras. “O comunicado da Terceira Plenária faz uma referência única ao papel central do Estado-partido na condução da economia”, diz Le Corre. “Ao contrário dos anos 1990, o setor estatal está crescendo, não diminuindo. A ênfase excessiva na segurança nacional não é um bom sinal para os investidores estrangeiros – muitos estão, na melhor das hipóteses, esperando notícias melhores.”
“Os investidores estrangeiros precisarão tratar a China como qualquer outro grande país opaco com um grande mercado, como Brasil ou Indonésia: entrar, mas com cautela”, afirma Anne Stevenson-Yang, fundadora e diretora de pesquisa da J Capital Research, consultoria americana.
Diretrizes digitais:
O plano da China para aprimorar a integração das tecnologias digitais nos negócios até 2026
- Inovação
Aproveitar tecnologias avançadas da informação para impulsionar a inovação em modelos de negócios, produtos e serviços.
- Cooperação internacional
Expandir canais e plataformas para o comércio digital, promover o e-commerce da Rota da Seda e ingressar no Acordo de Parceria da Economia Digital (DEPA).
- Investimento estrangeiro
Atrair investimentos estrangeiros facilitando restrições em setores como telecomunicações e facilitar o fluxo de dados transfronteiriço para empresas estrangeiras qualificadas.
- Gastos dos consumidores
Impulsionar o consumo digital por meio de incentivos nos setores digital, verde e de saúde e criar cenários de consumo em experiências, entretenimento e cuidados médicos.
- Desenvolvimento rural
Implementar projetos de e-commerce rural de alta qualidade e aprimorar redes logísticas e postais para o crescimento do comércio eletrônico rural.
- E-commerce transfronteiriço
Promover um desenvolvimento padronizado e ampliar a variedade de produtos globais disponíveis para consumidores chineses; incentivar pequenas e médias empresas estrangeiras a acessar o mercado chinês por meio de canais online simplificados.
- Abertura no comércio digital
Expandir parcerias de e-commerce da Rota da Seda com 31 países e estabelecer mecanismos de cooperação bilateral e uma aliança global para o comércio eletrônico.
- Engajamento global
Participar ativamente das negociações de e-commerce na OMC (Organização Mundial do Comércio); fortalecer diálogos dentro de organizações internacionais (BRICS, G20, APEC); avançar nas negociações para ingressar no Acordo de Parceria para a Economia Digital e fortalecer a colaboração global no comércio digital.
Fonte: english.gov.cn