A ilha de Penang, na Malásia, é um dos principais centros mundiais de semicondutores. Lá se situam unidades de gigantes globais como a Intel, Lam Research, Western Digital, Dell, Micron, Boston Scientific, entre outros. Antes, fabricava walkman da Sony (lembram?) e produtos têxteis, como camisas de várias marcas internacionais.
De um começo pioneiro nos anos 1970, ao atrair empresas de hardware como a Sony e seu toca-fitas cassete móvel, Penang conseguiu avançar na cadeia de valor, gradativamente abandonando atividades mais intensivas em mão de obra (e de baixo salário), para atrair investimentos em engenharia de hardware e pesquisa e desenvolvimento — em sua maior parte, por meio de investimentos diretos estrangeiros. As fábricas têxteis se foram; indústrias de módulos de memória e equipamentos médicos se instalaram. É um exemplo bem-sucedido de upgrade em cadeias globais de valor, progressivamente ocupando atividades mais intensivas em conhecimento e geração de valor.
Mas, desde 5 de abril, com o tarifaço do presidente do EUA, Donald Trump, um módulo de memória SSD exportado da Malásia — ou mesmo um carrinho de brinquedo Hot Wheels, da Mattel, também de uma fábrica global em Penang — vai chegar 24% 10% mais caro no EUA. É um choque grande (mesmo com o recuo de 24% para 10% por 90 dias).
A Malásia, bem como outros países do Sudeste Asiático, fez uma bem-sucedida aposta em crescer via integração a cadeias globais de valor, atraindo investimentos de gigantes mundiais para exportar para destinos como o EUA. Apenas do estado de Penang foram exportados RM 495 bilhões em 2024, o equivalente a cerca de US$ 110 bilhões.
A virada protecionista do governo americano implica um sério risco a essa estratégia. De uma hora para outra, uma rota tradicional de exportação do Sudeste Asiático para o EUA está sob ameaça — e, quem sabe, todo um modelo de desenvolvimento para a região.
O Sudeste Asiático foi particularmente visado pelas tarifas do governo Trump na rodada inicial, embora agora, por 90 dias, as taxas tenham caído para 10% para todos: Camboja (49%), Laos (48%), Vietnã (46%), Mianmar (44%), Tailândia (36%), Indonésia (32%), Brunei (24%), Malásia (24%) e Filipinas (17%). Na tarifa mínima aparece o país mais rico (per capita) da região da ASEAN: Singapura, com “apenas” 10%. Isso se explicou pela forma como tais tarifas foram calculadas: o déficit bilateral com o EUA dividido pelo total de exportações e multiplicado por 0,5 (como “desconto”). Singapura já se desindustrializou — é um grande hub de serviços mundiais, entre os quais serviços financeiros. Ah, o tarifaço americano não levou em conta o setor de serviços, grande motor das economias desenvolvidas.
Isso significa dizer que os empregos de manufatura vão voltar para os Estados Unidos? Alguns dos mais sofisticados de Penang talvez sim, mas nem isso é certeza. Não é apenas oferecendo salários mais baixos do que os de trabalhadores americanos ou japoneses que se constrói um hub de manufatura.
Sobre a Malásia
A Malásia é um país pequeno (33 milhões de habitantes), mas um gigante no setor por vários fatores: mão de obra fluente em inglês, salários competitivos em um país de renda média superior (parecidos com os do Brasil, por sinal), sistema de treinamento industrial, câmbio e inflação previsíveis, infraestrutura espetacular e custos de transação baixos, com maiores certezas regulatórias em questões tributárias e trabalhistas, entre outros.
Per capita, a Malásia exporta US$ 10,9 mil. Isso é quase dez vezes mais do que o Brasil (US$ 1,68 mil, dados do Observatório de Complexidade Econômica para 2023). Há os produtos primários, como óleo de palma e gás natural, mas eletrônicos são o que lideram a pauta exportadora. E, por estar bem integrada a cadeias globais de valor, a Malásia também importa muito mais, proporcionalmente.
Sobre o Vietnã
O maior dano, em tarifa, é o sofrido pelo Vietnã. Com US$ 424 bilhões em exportações, o Vietnã exporta mais do que o Brasil (US$ 335 bilhões). A quem visita o Sudeste Asiático, eu sempre recomendo viajar também ao Vietnã: a sensação é de voltar no tempo e comparar com os relatos sobre a China no começo dos anos 1990. O Vietnã é um país pobre, de trânsito caótico, mas de imenso crescimento, com mão de obra bem treinada e enormes investimentos em produção. É uma imagem de transição econômica: muito forte para indústrias intensivas em mão de obra, de baixos salários, mas crescendo rápido em setores de maior valor agregado e serviços sofisticados. É de onde saem tênis Nike de baixo custo de fabricação para o mercado americano, mas também é onde há fabricação própria de carros elétricos, como a indústria automotiva VinFast.
Impacto do tarifaço no Sudeste Asiático
Como região dinâmica e exportadora, o Sudeste Asiático foi dos mais afetados pelo tarifaço. Mas os fatores do seu sucesso vão muito além do que será alcançado por tais tarifas. O ajuste mais provável é que exportações para o Estados Unidos sejam realocadas para países com tarifas menores (como Filipinas, Sul da Ásia ou África), e países como o Vietnã continuem exportando para outros mercados (o que o CEO da Nike já anunciou).
No curto prazo, todos perdem, e tanto as bolsas de valores orientais como ocidentais refletem essa queda em eficiência e prosperidade. Mas é difícil imaginar indústrias com escala e competitividade, nos Estados Unidos, baseadas em costurar bolas de futebol, sapatos ou colar borracha em gadgets eletrônicos. Penang já foi isso — e não quer ser mais.
Se a “estratégia” das tarifas der “certo” e os EUA construírem uma indústria competitiva como a dos principais itens exportados por Camboja, Laos e Mianmar, ou mesmo pelos países mais avançados do Sudeste Asiático, é quase certo que a economia americana terá regredido em termos de transformação estrutural.