Nas últimas décadas, o palco global da liderança empresarial deixou de ser exclusivamente centrado no Ocidente para se tornar marcadamente multipolar, apesar de pouco aparente ou mascarado pela comunicação do Ocidente, a China não só se transformou como também deu um salto em desenvolvimento. Como protagonistas desse novo cenário — não mais apenas como potência econômica ou centro de inovação, e sim também como propositora de um modelo de gestão alternativo que remete ao passado e uma base sólida de costumes e referências.
Vamos explorar nesta coluna de estreia as distinções entre os modelos de gestão chineses e ocidentais, não com o objetivo de fazer uma comparação binária, mas de compreender lógicas distintas que refletem diferentes fundamentos históricos, culturais e estruturais.
Comparando modelos em um mundo em um mundo multiparadigmático
Em um mundo interconectado e ideologicamente diverso, entender essas diferenças é uma exigência estratégica. Vejamos a seguir cinco das mais importantes.
Harmonia (versus autonomia)
A raiz das grandes diferenças nos modos de gerencial ocidental e oriental está na cultura. Enquanto a gestão ocidental é moldada pela lógica greco-romana, pelo individualismo iluminista e por uma ética de mérito e autonomia, a gestão chinesa é profundamente influenciada pelo confucionismo, que valoriza hierarquia, equilíbrio relacional (guanxi), harmonia social e coletiva.
Na China, confiança e redes de longo prazo frequentemente se sobrepõem a formalismos contratuais, a liderança é relacional, e não transacional e isso acaba influenciando na tomada de decisão é baseada em consenso, respeita a senioridade e prioriza a coesão.
E isso vale para todas as empresas? Vejamos um exemplo recente em uma empresa de tecnologia chinesa, em que o lançamento de um produto teve múltiplas rodadas de alinhamento informal com stakeholders internos e acabou por não seguir dada a visão da liderança. Se isso acontecesse em startups do Vale do Silício, um product manager teria autonomia para decidir após um ciclo de sprint, com base em dados e feedback direto do usuário.
Velocidade e escala
O modelo de gestão chinês é caracterizado pela velocidade e pela capacidade de escalar rapidamente, mas isso acontece principalmente pela clareza de onde se quer chegar, exemplo desse alinhamento é o papel desempenhado pelos Planos Quinquenais do governo chinês — instrumentos estratégicos que estabelecem prioridades econômicas, industriais e tecnológicas para períodos de cinco anos. Esses planos funcionam como bússolas macroeconômicas, sinalizando onde os investimentos, as políticas públicas e as inovações devem convergir.
Empresas, especialmente nos setores de tecnologia, energia, biotecnologia e inteligência artificial, adaptam seus roadmaps corporativos para se alinhar às metas nacionais estipuladas no plano vigente. O atual 14º Plano Quinquenal (2021–2025), por exemplo, enfatiza autossuficiência tecnológica, desenvolvimento sustentável e economia digital — temas que se tornaram rapidamente dominantes na estratégia das grandes corporações chinesas. Trata-se de uma gestão estratégica em escala nacional, que redefine as fronteiras entre planejamento estatal e competitividade empresarial.
A separação entre setor público e privado é menos rígida. Enquanto empresas ocidentais operam sob lógicas de “capitalismo de acionistas” (EUA) ou “capitalismo de stakeholders” (Europa), as empresas chinesas operam sob duplo imperativo: performance de mercado e alinhamento com diretrizes nacionais.
Com isso, muitas políticas são frequentemente testadas regionalmente antes de serem implementadas em larga escala. Essa lógica se reflete nas empresas: lançamentos rápidos, coleta de feedback em tempo real e ciclos de iteração contínua.
Longe de ser caótico, esse modelo é altamente sistematizado e adaptativo. Alguns casos de referência:
- Pinduoduo usou o comportamento de compras sociais para escalar em regiões rurais.
- ByteDance opera com milhares de testes simultâneos de conteúdo.
- Shein combina dados do consumidor em tempo real com uma cadeia de fornecimento ágil.
O Estado com stakeholder estratégico
Como mencionamos acima, a separação entre setor público e privado é menos rígida. O Estado não atua apenas como regulador, mas como co-arquiteto da estratégia econômica nacional — o que molda diretamente os modelos de governança corporativa.
Enquanto empresas ocidentais operam sob lógicas de “capitalismo de acionistas” (EUA) ou “capitalismo de stakeholders” (Europa), as empresas chinesas operam sob duplo imperativo: performance de mercado e alinhamento com diretrizes nacionais.
Nessa lógica a China também opera com mecanismos de incentivo seletivo, como as listas positivas que definem setores e tecnologias prioritárias para o desenvolvimento nacional. Essas listas, geralmente vinculadas aos objetivos traçados nos Planos Quinquenais, funcionam como um farol estratégico para o capital estatal e privado. Indústrias como inteligência artificial, semicondutores, energia verde, biotecnologia e manufatura avançada são frequentemente posicionadas como áreas de interesse nacional e segurança econômica, o que garante a elas benefícios concretos — como acesso facilitado a crédito público, subsídios, terrenos, incentivos fiscais e maior proteção regulatória.
Essa priorização não apenas acelera a competitividade dessas indústrias, mas também influencia diretamente o portfólio de atuação de conglomerados privados e estrangeiros que operam na China. Em outras palavras, a vantagem competitiva na China passa, inevitavelmente, por entender e alinhar-se às diretrizes estatais de futuro.
Alguns casos se tornam emblemáticos, como o caso Alibaba, cuja estrutura foi revista como parte de uma reorganização ampla do setor digital, evidencia essa dinâmica. A mensagem é clara: inovação é desejada, mas deve coexistir com o interesse do Estado.
Para empresas estrangeiras, isso impõe um desafio adicional: compreender não apenas o mercado chinês, mas o ecossistema institucional e seu impacto direto sobre a gestão empresarial.
Cultura organizacional e pessoas
A cultura de trabalho chinesa tradicional é marcada por alta disciplina, longas jornadas (modelo 996: das 9h às 21h, seis dias por semana) e forte foco em performance coletiva. A lógica da “superação” (拼搏) ainda é predominante, mas tem mudado bastante com a acensão das empresas de tecnologia e a revolução econômica dos último 20 anos.
Essa evolução está bem orquestrada e precisamos considerar o modelo como eles organizam a sua visão de progresso. No topo da hierarquia está o chamado “tier 1” da indústria, formado por setores estratégicos de alta tecnologia como inteligência artificial, semicondutores, computação quântica, biotecnologia e novas energias. Esses setores recebem atenção direta do Estado, com apoio massivo em P&D, proteção regulatória e estímulo à autossuficiência tecnológica.
O tier 2 abriga indústrias de médio-alto valor agregado, como automóveis, eletrodomésticos inteligentes e infraestrutura digital, onde a China busca melhorar sua competitividade global e elevar o padrão técnico.
Já o tier 3 corresponde à base tradicional da economia chinesa: manufatura intensiva, bens de consumo e montagem — segmentos que consolidaram a imagem da China como “fábrica do mundo”. Embora ainda essenciais para exportações e empregos, esses setores passam por transformações digitais e robotização, sob forte pressão para ganho de produtividade e redução de dependência de mão de obra barata. Essa reclassificação industrial é parte de uma transição planejada da China de potência produtiva para potência inovadora, sem abdicar de sua base fabril, mas reposicionando-a dentro de uma cadeia de valor mais sofisticada e integrada.
Junto disso, temos globalmente uma virada cultural em curso: mais equilíbrio entre vida pessoal e profissional, modelos híbridos de trabalho e ênfase em bem-estar como ativo estratégico. Essas diferenças moldam os sistemas de gestão de pessoas, de atração e retenção de talentos.
A China também está mudando. O movimento “lying flat” (躺平), com jovens recusando os excessos do trabalho extremo, é um alerta. A nova geração busca mais propósito, saúde mental e autonomia — num paralelo com tendências globais, mas dentro de um contexto sociopolítico próprio.
Diante desse novo cenário, o governo chinês e grandes corporações têm adotado estratégias para responder ao crescente mal-estar da juventude urbana. A preocupação com o movimento “lying flat” (躺平), e sua evolução mais recente, o “let it rot” (摆烂), levou o Estado a posicionar a valorização do trabalho produtivo como pilar moral e patriótico. Campanhas midiáticas, ajustes curriculares e discursos oficiais vêm reforçando a importância da resiliência e da contribuição individual para o rejuvenescimento da nação. No setor privado, algumas empresas — especialmente de tecnologia e consumo — começaram a testar modelos mais flexíveis de jornada, iniciativas de bem-estar mental, programas de propósito social e até mesmo políticas internas para reduzir o “996”.
Ainda que em estágio inicial e muitas vezes restritas a empresas com capital internacional ou de setores mais modernos, essas mudanças indicam uma tentativa de reconciliação entre ambição econômica e sustentabilidade humana. Além disso, o próprio discurso de inovação e empreendedorismo está sendo reconfigurado: as novas gerações são incentivadas a empreender em setores como tecnologia verde, impacto social e revitalização rural, como forma de encontrar propósito sem romper com a lógica de progresso coletivo. Trata-se de uma adaptação, onde a liderança chinesa tenta canalizar o desejo por autonomia da juventude para direções compatíveis com o projeto nacional.
Estratégia silenciosa (versus visibilidade carismática)
A liderança chinesa privilegia a discrição, a visão de longo prazo e o uso estratégico do poder institucional. O líder ideal é disciplinado, relacional e reservado — sua legitimidade vem dos resultados e da estabilidade que promove.
Na China, a discrição não é uma fraqueza, mas uma virtude estratégica profundamente enraizada na cultura confucionista e taoísta. O pensamento confucionista promove a ideia de que o verdadeiro líder é aquele que age com moderação, sabedoria e reverência pela ordem coletiva, evitando o exibicionismo e privilegiando a harmonia sobre o confronto. Já no taoismo, a ação eficaz muitas vezes é invisível, fluida e sutil — o líder ideal “não aparece, mas governa”. Essa filosofia se traduz em práticas organizacionais onde o poder é exercido por influência indireta, pela construção de consensos silenciosos e pela antecipação de dinâmicas políticas internas, mais do que por imposições explícitas.
Essa postura molda profundamente a forma como os líderes chineses se posicionam: pouca presença pública, escassas entrevistas, linguagem prudente e atuação relacional nos bastidores, muitas vezes cultivando lealdades e alianças ao longo de décadas. O sucesso é medido não apenas por crescimento ou inovação, mas pela estabilidade institucional, pela continuidade dos resultados e pela ausência de escândalos ou rupturas reputacionais. O líder é guardião da ordem, não protagonista do espetáculo.
No ambiente corporativo, essa abordagem se manifesta em decisões colegiadas, no investimento paciente em relações de longo prazo com o governo, com parceiros e com fornecedores, e numa estrutura onde a exposição individual é muitas vezes vista com desconfiança. A liderança chinesa tende a evitar “heróis corporativos” — pois o destaque individual pode ameaçar a coesão interna ou atrair atenção política indesejada. A preferência por estruturas discretas, deliberativas e pouco verticalizadas não é acidental: é um reflexo direto da cultura onde a autoridade moral (德 – dé) é mais relevante que a autoridade formal.
Esse contraste se intensifica quando comparado ao Ocidente, onde a liderança é cada vez mais performática, centrada em narrativas, visibilidade e impacto simbólico. Figuras como Elon Musk, Satya Nadella ou Sheryl Sandberg dominam a cena global não apenas pelos resultados que entregam, mas pela maneira como encarnam uma visão, comunicam valores e transformam-se em ícones midiáticos.
Na China, um líder que buscasse esse tipo de protagonismo estaria, paradoxalmente, minando sua própria legitimidade. O excesso de exposição pode ser lido como vaidade, arrogância ou, pior, desafio à ordem estabelecida. Por isso, mesmo entre CEOs de empresas globais, como Robin Li (Baidu), Daniel Zhang (Alibaba) ou Lei Jun (Xiaomi), a comunicação pública é comedida, técnica e raramente pessoal. Em vez de branding pessoal, prevalece o alinhamento institucional.
Essa opção por uma liderança “de bastidores” cria um ambiente onde o poder é difuso, mas funcional. As decisões são tomadas com base em análises sistêmicas, validação interna e proteção dos interesses da coletividade — incluindo o do Estado, que, como vimos, é também um stakeholder presente e influente. É uma liderança que opera com foco no longo prazo, na preservação da ordem e no equilíbrio estratégico das partes envolvidas.
Ren Zhengfei (Huawei) é um exemplo claro desse perfil: visionário, porém pouco midiático. Em contraste, líderes ocidentais como Elon Musk incorporam um modelo carismático, provocador e publicamente ativo, moldando narrativas globais.
Ambos são eficazes — mas suas lideranças respondem a expectativas culturais distintas. A liderança “de palco” é valorizada no Ocidente; a liderança “de bastidor”, na China.
Convergência, colisão ou reconfiguração? O futuro da gestão
À medida que a economia global se torna mais interdependente, uma questão essencial emerge nos círculos estratégicos e acadêmicos: estamos caminhando para uma globalização dos modelos de gestão, para uma dominância dos paradigmas orientais ou para uma nova reconfiguração híbrida? Essa não é uma mera questão teórica — trata-se de uma disputa silenciosa sobre os fundamentos do poder, da performance e da legitimidade empresarial no século 21.
De um lado, observa-se uma difusão crescente de práticas e valores da gestão chinesa para além de suas fronteiras — especialmente em regiões do Sul Global, em empresas estatais internacionais, joint ventures e operações transnacionais lideradas por conglomerados como Huawei, Alibaba, Lenovo ou BYD. A centralidade do longo prazo, a governança com influência estatal, o pragmatismo relacional e a estrutura hierárquica disciplinada se apresentam não como alternativas exóticas, mas como modelos viáveis em contextos de complexidade institucional, competição geopolítica e busca por autonomia estratégica.
De outro lado, multinacionais ocidentais, ao operarem na China e em mercados com estruturas similares, são obrigadas a adaptar seus modelos. Elas revisam seu approach à gestão de pessoas, à relação com o governo, à lógica de compliance, ao estilo de liderança e à construção de alianças locais. O que se vê é menos uma imposição de valores universais e mais uma negociação cultural contínua, onde a fluência em códigos institucionais torna-se tão vital quanto o domínio de frameworks de negócio.
Nesse cenário, a hipótese de convergência total perde força, dando lugar a uma nova visão: a de uma gestão multiparadigmática, onde diferentes modelos coabitam, se influenciam e, em certos casos, se fundem. O caso da TikTok/ByteDance é ilustrativo: uma empresa com infraestrutura tecnológica, cultura organizacional e lógica algorítmica enraizadas na China, mas com presença global adaptada às dinâmicas culturais e regulatórias locais. Trata-se de uma empresa sincretista por design, e não apenas por exigência.
Essa reconfiguração exige muito mais do que traduzir manuais ocidentais para o mandarim — ou vice-versa. Ela demanda modelos operacionais localizados, lideranças culturalmente ambidestras e estruturas de governança capazes de integrar múltiplas racionalidades institucionais. A gestão do futuro não será uma síntese pacífica entre Oriente e Ocidente, mas uma arena de tradução, adaptação e convivência entre diferentes ordens simbólicas e estratégicas.
Para os líderes globais, o desafio não é escolher entre modelos, mas construir a capacidade de operar entre eles — com consciência, fluência e legitimidade. A vantagem competitiva não estará mais apenas no domínio técnico, mas na sofisticação cultural e política da gestão.
Liderança integrativa como vantagem competitiva na nova era
A comparação entre os modelos de gestão chineses e ocidentais revela mais do que contrastes estruturais ou culturais — ela expõe os limites da busca por modelos únicos e universais de liderança e organização. Estamos cada vez mais dominados pela incerteza, interdependência e disrupção tecnológica, o real diferencial competitivo estará na capacidade de operar com múltiplas lógicas simultaneamente.
A gestão do futuro exigirá líderes ambidestros, capazes de se mover entre o planejamento de longo prazo e a agilidade tática, entre o institucional e o relacional, entre a tradição e a inovação radical. Exigirá também inteligência contextual, leitura de sistemas complexos e sensibilidade cultural para liderar ecossistemas globais onde a legitimidade se constrói localmente.
A China, com sua combinação singular de continuidade civilizacional, pragmatismo estratégico e capacidade adaptativa, oferece referências valiosas para redesenhar modelos de gestão mais resilientes, sistêmicos e intencionalmente integrativos. Líderes silenciosos, seu foco no coletivo e sua governança ancorada na interdependência entre partes — ainda que diferentes das práticas ocidentais — podem nos ensinar a liderar em ambientes onde a complexidade não é uma exceção, mas a norma.
Na era em que vivemos, marcada por decisões automatizadas, novas assimetrias de poder, e desafios éticos globais — não bastará liderar com dados e tecnologia. Será preciso liderar com consciência histórica, plasticidade institucional e visão sistêmica.
A pergunta que deixo nesta coluna de estreia é: estamos preparados para aprender com a China não para imitá-la, mas para evoluir?
E mais profundamente: seremos capazes de abandonar o orgulho das nossas certezas para construir uma nova arquitetura global de liderança — mais plural, mais complexa, mais humana?