A capacidade produtiva da China é incomparável. Tanto que a demanda interna e a global lutam para acompanhar esse ritmo. Fabricantes de leite, por exemplo, estão descartando leite não vendido; 70 mil veículos elétricos fabricados na China estão parados em portos brasileiros aguardando para serem vendidos. E o país está cheio de apartamentos vazios que ainda não encontraram compradores.

A força e a escala do ecossistema industrial da China, especialmente agora que a digitalização da produção é onipresente, foram uma benção para a economia global, mas a fraqueza contínua da demanda interna denuncia sinais de sobrecapacidade industrial em uma ampla gama de setores.

“Com certeza há uma lacuna significativa entre a produção chinesa e a demanda interna”, diz Scott Kennedy, conselheiro sênior e presidente do Conselho de Negócios e Economia Chinesa no Center for Strategic and International Studies (CSIS). “A China produz cerca de 30% dos bens manufaturados do mundo e consome apenas cerca de 18%. Isso é uma grande diferença.”

Sobrecapacidade ou produção excessiva?

O aumento da produção material da China desde a adesão do país à Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001, foi meteórico. De acordo com o Banco Mundial, a produção manufatureira da China em 2023 foi de US$ 4,658 trilhões – em 2024, foi de US$ 625,22 bilhões, para comparação. No mesmo período, as exportações aumentaram de US$ 607,36 bilhões para US$ 3,513 trilhões.

A OMC não possui uma definição específica para sobrecapacidade, mas entende-se que o conceito se refere à capacidade de produção que não pode ser absorvida pela demanda interna – o que, por sua vez, geralmente leva ao aumento das exportações, frequentemente com preços subsidiados. A capacidade de fato tem seu papel, embora o problema central seja a superprodução além da demanda do mercado, independentemente da capacidade disponível.

De acordo com o Banco Mundial, a produção manufatureira da China em 2023 foi de US$ 4,658 trilhões – em 2024, foi de US$ 625,22 bilhões.

A taxa que mede o uso da capacidade de fabricação é outro indicador-chave usado pelos economistas para avaliar sinais de sobreprodução. “As coisas não parecem tão terríveis em termos de utilização geral da capacidade, que atualmente está em um nível bastante normal para a China”, afirma Julian Evans-Pritchard, chefe de economia da China no Capital Economics.

“Quando as pessoas falam de sobrecapacidade, tende a ser de forma mais ampla. Não significa apenas que há muita capacidade e que as taxas de utilização estão baixas, mas também que há produção excessiva, acima dos níveis que o mercado normalmente permitiria em um sistema de mercado livre”, completa.

A produção excessiva é a principal preocupação tanto para a economia chinesa como para seus parceiros comerciais internacionais. O superávit comercial da China alcançou um recorde de US$ 992,2 bilhões em 2024, após as exportações do país crescerem 5,9% e as importações subirem apenas 1,1% em relação ao ano anterior.

O contínuo subsídio da China a uma ampla gama de setores – por meio de isenções fiscais e outros incentivos – é bastante conhecido, e o foco crescente do país na autossuficiência impulsionou o investimento em setores considerados prioridades estratégicas nacionais, independentemente da demanda.

Liao Min, vice-ministro das finanças na China, afirmou que a capacidade de fabricação chinesa está ajudando o mundo a combater as mudanças climáticas, apontando que a demanda global por veículos elétricos alcançará entre 45 e 75 milhões de unidades até 2030, muito além da capacidade atual.

A psicologia do sistema é menos baseada na economia de livre mercado e mais focada no curto-prazismo e no controle estatal, muitas vezes ignorando a viabilidade comercial dos projetos.

“Há setores que o governo chinês vê como prioridades estratégicas nacionais. Neles, as empresas tendem a responder ao sinal do governo para investimento em produção”, diz Yanmei Xie, analista de geopolítica na Gavekal Research, empresa de pesquisa financeira de Hong Kong. “Elas são, portanto, menos sensíveis aos sinais de demanda, e isso tende a ser uma receita para a sobrecapacidade.”

A produção excessiva que resulta dessa abordagem para a política industrial, e o impacto deflacionário que ela pode causar, está no cerne do problema. “Minha preocupação é que, se a inflação continuar a cair, teremos um ciclo de retroalimentação negativa, onde a queda nos preços resulta em um crescimento mais fraco dos salários, o que leva a uma demanda interna mais fraca, o que, por sua vez, torna a situação de sobrecapacidade ainda pior”, diz Evans-Pritchard. “A China precisa ter cuidado para não entrar em um ciclo deflacionário negativo.”

A China refutou as alegações de sobrecapacidade. O presidente Xi Jinping afirmou em maio de 2024 que não existe sobrecapacidade no país. Liao Min, vice-ministro das finanças, afirmou em julho do mesmo ano que a capacidade de fabricação chinesa está ajudando o mundo a combater as mudanças climáticas e conter a inflação – apontando que a demanda global por veículos elétricos alcançará entre 45 e 75 milhões de unidades até 2030, muito além da capacidade atual.

“Eu diria que a sobrecapacidade, de certa forma, é uma característica e não um defeito da política industrial”, acrescenta Xie. “Ela pode estimular a concorrência, e as empresas que sobrevivem às guerras de preços resultantes se tornam ferozmente eficientes e competitivas, entre outras coisas.”

Sentindo a pressão

Sob uma perspectiva econômica básica, o impacto da sobrecapacidade e da superprodução no mercado interno tem um custo: a alocação ineficiente de recursos.

Ainda assim, a abordagem da China para gerenciar sua economia sempre foi relativamente ineficiente quando comparada a outras economias mais orientadas para o mercado livre.

Para os produtores, a competição criada pela dupla ameaça de demanda interna reduzida e capacidade excessiva pode resultar em pressões nos preços, como a atual guerra de preços na indústria automotiva, e é difícil para as empresas ter bons resultados financeiros.

As medidas de estímulo governamental e a relutância em permitir que as empresas quebrem (no sentido tradicional) significam que a sobrecapacidade na China tende a persistir.

“Os produtores estão enfrentando uma competição acirrada de todos os lados,” diz Kennedy. “Eles pegaram empréstimos imensos que estão tendo dificuldades para pagar. A redução de preços para continuarem competitivos está levando à deflação, o que significa menos receita para as empresas. Isso também está afetando os governos locais ao redor da China, muitos dos quais apoiaram algumas dessas empresas e agora estão vendo uma redução nas receitas fiscais e déficits significativos em suas posições.”

Além disso, as medidas de estímulo governamental e a relutância em permitir que as empresas quebrem (no sentido tradicional) significam que a sobrecapacidade na China tende a persistir.

Por outro lado, os preços menores teoricamente deveriam ser um fator positivo para os consumidores, mas a demanda interna continua deprimida por várias razões, incluindo a desaceleração do setor imobiliário e uma fraqueza macroeconômica geral que resultou em um crescimento mais lento da renda.

“As pessoas sentem que têm menos ativos porque os preços dos imóveis têm caído, e elas se sentem menos certas sobre seu potencial de ganho futuro, então é menos provável que gastem,” esclarece Xie.

Comércio, tensões e tarifas

Dado os problemas internos, a abordagem natural para compensar o problema da superprodução em meio à baixa demanda interna é aumentar o foco nas exportações, o que contribuiu para o superávit comercial recorde da China em 2024.

Os mercados internacionais – seja os que querem evitar a desindustrialização ou os que buscam se industrializar – estão começando a perceber o impacto das exportações chinesas em expansão. E muitos estão impondo controles e tarifas sobre os produtos chineses.

Os Estados Unidos são o maior exemplo. No momento, o país acha que a desindustrialização não é apenas uma questão econômica, política e socioeconômica, mas também um problema de segurança nacional. A administração Biden implementou tarifas sobre importações em vários setores, incluindo o setor de painéis solares fotovoltaicos, onde há uma quantidade significativa de produção excessiva na China.

“Vale notar que o Brasil, mesmo tendo uma relação próxima com a China, não vai necessariamente ficar de braços cruzados, permitindo que as empresas chinesas concorram de maneira muito agressiva com suas indústrias.”
Evans-Pritchard, chefe de economia da China no Capital Economics.

Já a administração Trump anunciou tarifas adicionais de 10% sobre as importações chinesas. Também houve uma resposta semelhante da União Europeia, com novas tarifas sobre importações de veículos elétricos – além de várias investigações antidumping sobre produtos chineses.

Dado o estado atual das relações entre China e Estados Unidos, não é surpresa que os parceiros comerciais dos americanos sintam-se inclinados a aumentar os controles sobre as importações chinesas. A questão é que agora, até mesmo os países que têm maior alinhamento geopolítico a China começaram a colocar em prática salvaguardas comerciais.

“As economias desenvolvidas foram as que mais responderam, mas começamos a emergentes, como Índia e Brasil, seguindo o exemplo com tarifas maiores sobre o aço chinês,” diz Evans-Pritchard. “Vale notar que o Brasil, mesmo tendo uma relação próxima com a China, não vai necessariamente ficar de braços cruzados, permitindo que as empresas chinesas concorram de maneira muito agressiva com suas indústrias.”

Encontrando o equilíbrio

Embora não use explicitamente a palavra “supercapacidade”, o governo chinês parece estar ciente do problema, listando a competição no estilo “involução” como a principal prioridade a ser tratada em 2025 na Conferência Central de Trabalho Econômico, em dezembro. O conceito se refere à deterioração de um sistema devido à intensa competição e distribuição desigual de recursos, e pode-se argumentar que a supercapacidade está no centro disso.

“A visão do governo federal é que o problema está nas administrações locais, que oferecem políticas preferenciais para atrair indústrias para suas regiões e engajam-se no protecionismo – o que, por sua vez, cria desperdício”, aponta Evans-Pritchard. “Eles tentaram limitar isso e criar um mercado nacional mais unificado na esperança de reduzir investimentos duplicados.”

Isso, junto com as diversas medidas de estímulo ao mercado introduzidas desde setembro de 2024 – voltadas para aumentar a confiança do mercado e o investimento –, ajudará em algum grau. O maior problema, porém, é que a abordagem quantitativa do lado da oferta da China para seus problemas econômicos não aborda o desequilíbrio macroeconômico entre consumo e investimento.

“A demanda doméstica e o consumo têm de ser elementos muito mais centrais no crescimento chinês daqui para frente. Parece que essa mensagem foi recebida,” diz Kennedy. “A maior mudança deverá ser no desenvolvimento e na implementação de políticas e no apoio financeiro e regulatório por trás delas, para fortalecer a capacidade de consumo das famílias chinesas. Isso inclui melhorar saúde e educação, aumentar salários e ter um apoio geral melhor em relação ao que vai para os produtores chineses. É um desafio gigantesco.”

Alcançando a capacidade

O aumento do protecionismo comercial ao redor do mundo significa que simplesmente aumentar as exportações não ajudará a China a lidar com as consequências de sua superprodução. Até que a demanda do mercado se torne um fator mais importante, a mudança provavelmente será lenta. 

A abordagem tradicional, voltada para o lado da oferta e impulsionada por investimentos, tem impacto limitado na escassez de demanda e consumo doméstico, que está no cerne da supercapacidade da China.

“Pode haver um ponto de inflexão onde os formuladores das políticas mudem sua abordagem e adotem um apoio substancial ao consumo, e o catalisador provavelmente será o aumento da preocupação com a deflação,” diz Evans-Pritchard. 

“No momento, eles parecem estar priorizando a segurança nacional e se concentrando na redução da dependência externa por produtos, mas em algum momento nos próximos cinco a dez anos, a deflação atingirá um nível em que terão que mudar de estratégia e tomar medidas mais agressivas para resolver o problema.”

Mas, por enquanto, as exportações como solução se tornarão cada vez mais inviáveis.

“As tarifas dos EUA vão dificultar para os fabricantes escoarem a produção excedente para o exterior,” diz Evans-Pritchard. “Obviamente, há mercados alternativos para exportação, mas eles já estão enviando o máximo que podem para países não pertencentes aos EUA, então será difícil preencher o vazio deixado pela demanda mais fraca dos EUA sem cortar ainda mais os preços das exportações.”

*John Reid, redator-colaborador da CKGSB Knowledge

CKGSB Knowledge é uma publicação reconhecida na Ásia, na América do Norte e na União Europeia pertencente a a Cheung Kong Graduate School of Business (CKGSB), uma escola de negócios de renome, sediada em Pequim, na China.