Durante a maior parte da história da humanidade, o transporte foi encarado como uma atividade terrestre. Nos próximos anos, o desenvolvimento da economia de baixa altitude na China vai mudar radicalmente essa percepção. 

A economia de baixa altitude se baseia na exploração comercial do espaço aéreo abaixo de mil metros, usando drones e aeronaves eVTOL (sigla em inglês para veículo elétrico de decolagem e aterrissagem vertical), entre outras inovações. 

Hoje, eVTOLs que levam passageiros e cargas já estão em desenvolvimento – e em breve começarão a aparecer nos céus. “Espero que nosso céu se torne bem movimentado nos próximos cinco a dez anos”, afirma nesta entrevista Kellen Xie, vice-presidente sênior da fabricante de aeronaves eVTOL Autoflight, da China.

Enquanto isso, os fabricantes desses veículos se veem às voltas com a necessidade de aperfeiçoar os sistemas com múltiplas redundâncias e com um rigoroso ambiente regulatório para a economia de baixa altitude – mas com a oportunidade de explorar a flexibilidade nas opções de viagens, avalia Xie a seguir. A entrevista é de Patrick Body.

Quais são os veículos e produtos em que vocês estão trabalhando na Autoflight e quais são os objetivos da empresa?

Xie – Trabalhamos com eVTOLs, aeronaves elétricas de decolagem e pouso vertical. Esse é um veículo 100% elétrico, com asas para voos de longa distância e hélices de sustentação que permitem a decolagem e o pouso sem a necessidade de uma pista. O fato de ser elétrico também mantém os níveis de ruído bastante baixos em comparação com veículos tradicionais, como helicópteros.

Temos uma versão para passageiros, chamada Prosperity One, e uma versão para carga, chamada Carry-All. O modelo de carga pode transportar até cerca de 400 kg de carga útil e voar por mais de uma hora e 20 minutos. Já a versão para passageiros pode acomodar até cinco pessoas, com um alcance máximo de voo de mais de 250 km com uma única carga.

Outra vantagem desse tipo de aeronave é que, no futuro, ela poderá ser totalmente autônoma. A versão para passageiros atualmente exige a presença de um piloto de segurança devido a requisitos regulatórios, mas já é capaz de voar de forma autônoma, graças a diversos computadores de voo e sensores de alta precisão que auxiliam na navegação, na tomada de decisões e no controle de altitude.

Quais são os principais usos que você prevê para essa tecnologia?  

Xie – Em áreas rurais e em regiões onde a infraestrutura não é tão desenvolvida, tanto os veículos de carga como os de passageiros têm grande potencial. Onde a infraestrutura é mais avançada, como onde há trens de alta velocidade e rodovias, a versão para passageiros é mais útil para viagens específicas. Tudo depende do local e da necessidade. Por exemplo, em países com geografia desafiadora, como em ilhas ou áreas montanhosas, a aeronave eVTOL pode ter muito mais aplicações do que em terrenos planos e abertos.  

Nosso objetivo é alcançar total autonomia para ambas as versões no futuro. Os modelos de carga já são totalmente autônomos e provavelmente não serão usados nos centros urbanos, e sim para transporte entre armazéns em áreas suburbanas ou entre continentes e ilhas, por exemplo. Já a versão para passageiros exige um nível de segurança muito maior, por isso provavelmente continuaremos utilizando pilotos de segurança por um período de, pelo menos, cinco a dez anos.

Você acredita que essas aeronaves substituirão as tecnologias ou meios de transporte que já existem?

Xie – O eVTOL é um meio de transporte muito especial porque tem a capacidade de transportar carga ou passageiros de um ponto a outro de forma extremamente flexível. Se você, hoje, quiser voar de A para B, mas amanhã precisar ir de B para C, é totalmente viável mudar a trajetória. Quanto mais conexões flexíveis forem criadas, melhores serão as oportunidades. 

O eVTOL é mais parecido com um carro, mas com um alcance muito maior e capacidade de percorrer 150 km em menos de uma hora.

É diferente do que acontece com rodovias ou trens de alta velocidade, que dependem de infraestrutura fixa e destinos predefinidos. Uma vez construída a rede, você fica limitado a ela. Com os eVTOLs, é possível utilizar um número variável de unidades diariamente ou até mesmo para viagens únicas, ajustando os destinos conforme a demanda dos consumidores.

Além disso, o eVTOL oferece um novo conceito de transporte privado. Não é como o transporte público de massa, onde você precisa dividir o espaço com outras pessoas. É mais parecido com um carro, mas com um alcance muito maior e capacidade de percorrer 150 km em menos de uma hora. 

Essa alternativa pode ser especialmente útil em grandes cidades, pois permite evitar congestionamentos e viajar rapidamente nos horários de pico. Uma viagem que normalmente levaria uma ou duas horas pode ser reduzida para menos de dez minutos. Isso cria uma experiência extraordinária em comparação com o transporte terrestre.

Existem barreiras regulatórias para o desenvolvimento desses produtos? Você vê diferença, nesse quesito, entre a China e outros países?

Xie – Os padrões regulatórios para a segurança dos eVTOLs são extremamente rígidos. Precisamos comprovar níveis de segurança semelhantes aos das grandes empresas de transporte aéreo. Muitas vezes esses requisitos são ainda maiores do que os exigidos para helicópteros tradicionais, pois as aeronaves eVTOL precisam ter múltiplas redundâncias.

Por exemplo, nossas unidades possuem dez motores de sustentação, e precisamos garantir que, caso um deles falhe, a aeronave ainda consiga voar. O mesmo princípio se aplica aos propulsores, computadores de voo e módulos de bateria—o veículo deve continuar operando mesmo que um desses componentes apresente falha.

Para garantir isso, temos computadores de voo desenvolvidos por equipes diferentes, para que possíveis erros não sejam replicados no sistema. Além disso, a aeronave conta com diversos mecanismos de segurança e redundâncias estruturais, e todos devem ser aprovados em certificações de segurança exigidas pelos órgãos reguladores.

Quais são os principais desafios práticos no desenvolvimento de aeronaves para a economia de baixa altitude?

Xie – O modelo de carga provavelmente enfrenta menos desafios do que a versão para passageiros, principalmente devido ao fator humano e ao ambiente onde cada um será operado. Mas a maior dificuldade é que tudo isso ainda é muito novo. A tecnologia é totalmente elétrica, e isso nunca foi feito antes nessa escala, então provar que ela atende aos padrões de segurança e outros requisitos regulatórios pode ser um grande desafio. O processo de testes pode levar anos.

No futuro, teremos que mudar completamente a forma como pensamos o transporte, pois as aeronaves estarão voando acima das cidades.

Nossa empresa foi fundada em 2017, mas o fundador e sua equipe trabalham no desenvolvimento de aeronaves elétricas desde 2000. São décadas de pesquisa e milhares de testes para chegar ao nível em que estamos hoje. Não é algo que pode ser feito do dia para a noite ou simplesmente copiado de outro lugar. Exige muito investimento em pesquisa e desenvolvimento, testes contínuos e várias iterações para comprovar que os sistemas são seguros.

Além disso, há desafios relacionados à infraestrutura. No futuro, teremos que mudar completamente a forma como pensamos o transporte, pois as aeronaves estarão voando acima das cidades. Quando alguém sair do trabalho, em vez de descer até a rua ou pegar o metrô, poderá subir de elevador até o topo do prédio para acessar a plataforma de pouso. Mas hoje poucos edifícios possuem essa infraestrutura. Criar essa rede de suporte também será um desafio e levará tempo, além de estar sujeito a regulações rigorosas.

Qual é a sua expectativa para a adoção generalizada de seus veículos – e em que prazo?

Xie – Diria que, nos primeiros dez anos, o uso será limitado a rotas fixas. Os cenários mais comuns devem incluir trajetos como os de um aeroporto para a cidade, de um aeroporto para outro ou de áreas suburbanas para o centro urbano.

Passados de dez a 20 anos, seu uso será muito mais flexível, permitindo viagens de ponto a ponto. Nesse estágio, será possível chamar um eVTOL por meio de um aplicativo, e ele levará você ao destino desejado.

A Autoflight recebeu apoio governamental no desenvolvimento dessa tecnologia?

Xie – A priorização da economia de baixa altitude é um movimento muito inteligente, pois ainda não utilizamos amplamente o espaço aéreo abaixo de mil metros. O governo chinês está incentivando o desenvolvimento e o uso de drones, unidades eVTOL e aeronaves de aviação geral para aproveitar mais esse espaço e desenvolver a economia de baixa altitude.

Então, de maneira geral, recebemos um bom apoio. Mas acredito que o suporte de que realmente precisamos é a abertura de mais rotas de teste para que possamos usar nossas aeronaves para realizar operações e testar sua eficácia. Isso nos permitirá melhorar em diversas áreas e ajudará o setor a se tornar mais seguro e útil. 

“O suporte de que realmente precisamos é a abertura de mais rotas de teste para que possamos usar nossas aeronaves para realizar operações e testar sua eficácia.”

Acredito que se o público começar a ver mais exemplos de eVTOLs e outras aeronaves voando, perceberá como essa tecnologia pode ser segura, e isso ajudará a desenvolver a confiança pública e a gerar entusiasmo sobre o futuro.

Quais são os planos da Autoflight para captação de recursos e seus objetivos de longo prazo?

Xie – O ambiente de investimentos atual na China é muito promissor. Levantamos recentemente uma nova rodada de fundos, e nossos concorrentes também receberam várias rodadas de apoio financeiro. No contexto econômico atual da China, pode ser difícil levantar capital, mas para esse setor em particular ainda vemos resultados muito positivos.

Claro, estamos nos esforçando para ser uma empresa melhor, aumentar nossa geração de receita e ampliar nossa escala econômica, oferecendo serviços para cada vez mais pessoas. O plano de longo prazo é, obviamente, virar uma empresa de capital aberto.

Quais são os planos da Autoflight para operar além do mercado chinês – e até que ponto questões geopolíticas podem dificultar essa expansão?

Xie – Nossa primeira entrega comercial civil foi para o Japão. Foram unidades pré-certificadas, que serão usadas para voar em uma feira realizada em Osaka em 2025. Também estamos em negociações com diversos consumidores de diferentes países da Ásia e realizamos voos de demonstração nos Emirados Árabes Unidos. Além disso, a Autoflight possui um escritório na Alemanha, trabalhando na certificação europeia.

Como nos vemos como uma empresa internacional, estamos determinados a desenvolver o mercado global.

Como você espera que a economia de baixa altitude se desenvolva nos próximos cinco a dez anos?

Xie – Há uma grande variedade de tecnologias envolvidas na economia de baixa altitude. Não são apenas as aeronaves, que exigem uma ampla gama de novas tecnologias, mas também a infraestrutura no solo, como depósitos, sistemas de despacho, sistemas de comunicação e sistemas de rastreamento e gestão.

“A economia de baixa altitude crescerá, começando pelo uso de unidades de carga em áreas suburbanas, de armazém para armazém, e gradualmente se expandindo para áreas urbanas.”

Espero que nosso céu se torne bem movimentado nos próximos cinco a dez anos. Obviamente, ainda será sob rigorosos controles de segurança para garantir que não ocorram acidentes, mas a economia de baixa altitude crescerá, começando pelo uso de unidades de carga em áreas suburbanas, de armazém para armazém, e gradualmente se expandindo para áreas urbanas. Também haverá crescimento em áreas voltadas para o turismo aéreo, passeios turísticos e coisas do tipo.

Há uma enorme quantidade de cenários possíveis para a economia de baixa altitude. Espero que esses cenários se tornem cada vez mais abrangentes e empolgantes, e que muitas pessoas comecem a se beneficiar ao participar desse setor.

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Patrick Body é redator da CKGSB Knowledge.