Em uma loja reluzente na cidade de Shenzhen, no sul da China, os mais novos veículos elétricos da montadora BYD estão sendo vendidos por quase metade do preço de dois anos atrás.
Enquanto isso, a 8 mil quilômetros de lá, em Stuttgart, no sudoeste alemão, executivos da Mercedes-Benz estão discretamente voltando atrás em seus planos de um futuro totalmente elétrico.
Esse conto de duas cidades reflete a dramática transformação da indústria automobilística global: os governos ocidentais já vinham usando suas armas comerciais mais pesadas para conter o que consideram uma ameaça existencial dos veículos elétricos chineses, o que já reduziu bastante as vendas nesses mercados. Agora, então, os preços ficaram absolutamente proibitivos nos EUA. Em setembro de 2024, as tarifas chegaram a 100% nos Estados Unidos sob o governo Biden. (N.E.: eram de 35% na Europa; em fevereiro de 2025, o governo Trump impôs tarifas de 20%; e, neste início de abril, a cobrança adicional está chegando a 125%, somando até 145%).
O movimento protecionista é uma reação ao domínio de mercado. A China agora detém impressionantes 65% do mercado global de veículos elétricos, com a BYD recentemente ultrapassando a Volkswagen para se tornar o segundo maior fabricante de automóveis do mundo por valor de mercado.
No que diz respeito aos Estados Unidos, as tarifas, que começaram a subir no primeiro mandato de Donald Trump, escalaram dramaticamente na gestão de Joe Biden, que aumentou os impostos sobre os veículos elétricos chineses para 100% em setembro de 2024. E todos já esperavam que, com o retorno de Trump à Casa Branca, as tarifas poderiam atingir até 200% sobre os veículos chineses, incluindo os produzidos por empresas chinesas em outros países. (N.E.: Ainda estão em até 145%, mas, mesmo assim, foi um baque.)
Esse jogo de xadrez industrial de alto risco está rapidamente se transformando em uma das disputas comerciais mais significativas da história recente, com implicações não apenas para a indústria automotiva, mas também para o futuro das relações econômicas entre Estados Unidos e China e o combate às mudanças climáticas.
Montadoras da China alcançaram o que executivos ocidentais um dia pensavam ser impossível: produzir veículos elétricos de alta qualidade a preços que seus concorrentes não conseguem igualar. Um BYD Atto 3 é vendido por aproximadamente US$ 25 mil na China. (Um similar no mercado europeu custa pelo menos o dobro disso – mesmo sem pensar em tarifas.)
A ambição chinesa se reflete nos números. Em 2023, a China exportou mais de 5 milhões de veículos, superando o Japão e se tornando o maior exportador de automóveis do mundo. Dos US$ 18 bilhões em importações chinesas visadas pelas novas tarifas dos Estados Unidos, os veículos elétricos representam a maior categoria individual.
Para os fabricantes europeus, a ameaça chinesa parece ser particularmente grande: os veículos elétricos chineses já haviam abocanhado 8% do mercado de carros elétricos da Europa antes do anúncio das novas tarifas – e analistas projetavam que essa participação poderia ter chegado a 15% até 2025 se não houvesse essa intervenção.
Economia de escala e inovação
O que vai acontecer agora? Como os efeitos de escala que impulsionaram o sucesso dos veículos elétricos chineses não podem ser facilmente replicados por meio de medidas protecionistas, os chineses estão menos intranquilos do que se poderia pensar. A pesquisa de Li Wei aponta três fatores críticos que deram aos fabricantes chineses sua vantagem atual, os três pouco imitáveis:
- Efeito de escala: o mercado interno unificado da China permitiu que empresas como a BYD alcançassem volumes de produção que reduziram drasticamente os custos. Com quase 950 mil veículos elétricos vendidos apenas em 2023, os fabricantes chineses atingiram economias de escala anos antes de seus concorrentes ocidentais.
- Desenvolvimento de uma supply chain abrangente: a indústria de veículos elétricos da China fabrica tudo, de baterias a chips até software, observa Wei. “Essa integração vertical oferece aos fabricantes chineses vantagens de custo sem precedentes e controle sobre a inovação.” O país agora produz 75% das baterias de veículos elétricos do mundo e controla grande parte do processamento de minerais críticos necessários para veículos elétricos.
- Inovação forçada pela competição: ao contrário dos mercados automotivos tradicionais, dominado por décadas por um punhado de fabricantes, o setor de veículos elétricos da China viu centenas de novos participantes competindo ferozmente por participação no mercado. “Quando você tem tantas empresas competindo no seu mercado doméstico, ou você inova rapidamente ou morre rapidamente”, observa Wei.
Essa pressão competitiva levou ao que Wei chama de “inovação em velocidade chinesa”. Enquanto os fabricantes ocidentais normalmente levam de quatro a cinco anos para desenvolver novos modelos, as empresas chinesas reduziram esse ciclo para um período de 18 a 24 meses. “A intensidade competitiva no mercado interno da China faz com que seja quase impossível para montadoras estrangeiras alcançar esse patamar apenas aumentando tarifas”, comenta.
Implicações para o comércio global
As implicações disso para a política comercial global são significativas. A pesquisa de Wei sugere que medidas protecionistas podem, na verdade, prejudicar os fabricantes ocidentais, ao protegê-los das pressões competitivas necessárias para impulsionar a inovação.
“A história nos ensina que proteção versus livre comércio é um princípio que remonta às Leis do Milho da Inglaterra nos séculos 17 e 18”, diz. “Indústrias protegidas invariavelmente ficam para trás.”
Em vez de tarifas, Wei sugere que os mercados ocidentais seriam melhor atendidos por políticas que incentivem a inovação doméstica, mantendo a pressão competitiva. “O desafio é reimaginar completamente como os carros são projetados, fabricados e vendidos. Esse tipo de transformação exige competição, não proteção.”
Para os fabricantes chineses, a estratégia é clara. Em vez de bater de frente com as tarifas, as montadoras estão cada vez mais focadas em construir redes globais de produção para atender a diversos mercados. “Assim como os fabricantes japoneses fizeram nas décadas anteriores, as empresas chinesas devem estabelecer bases de manufatura nos principais mercados”, diz Wei. “O objetivo delas é se tornarem empresas verdadeiramente globais.”
O desafio é reimaginar completamente como os carros são projetados, fabricados e vendidos. Esse tipo de transformação exige competição, não proteção
Li Wei, professor da CKGSB
Os próximos anos serão cruciais. Com o retorno de Trump à Casa Branca e o tarifaço a que estamos assistindo, fabricantes chineses estão acelerando seus planos de internacionalização. “As empresas que vão sobreviver são as que conseguirem construir supply chains globais e redes de inovação”, prevê Li. “Os campeões nacionais terão que se tornar campeões globais.”
A primeira resposta da China: estratégia tripla
Já prevendo o choque tarifário, os fabricantes de veículos elétricos chineses vinham adotando uma estratégia tripla para navegar o novo desafio comercial, ainda que cada abordagem trouxesse riscos e desafios. Como os executivos do setor chegaram a dizer, eles estavam repensando completamente sua presença global.
A primeira (e mais imediata) resposta foi acelerar planos de se instalar em locais com tarifas favoráveis. A Turquia emergiu como um centro crucial para o acesso ao mercado europeu, e a BYD investiu cerca de US$ 1 bilhão em uma instalação capaz de produzir 150 mil veículos por ano.
A lógica estratégica é convincente: a união aduaneira da Turquia com a União Europeia significa que os veículos produzidos lá podem entrar nos mercados europeus sem tarifas. Da mesma forma, fábricas no México poderiam servir como uma entrada alternativa para o mercado americano – embora, é claro, a escalada tarifária de Trump, atingindo fábricas de propriedade chinesa no México, vá complicar essa estratégia.
O maior desafio dessa abordagem envolve mais do que construir as fábricas: é replicar as vantagens da supply chain da China, explica Yi Cui, professor da Stanford University, dos Estados Unidos. “O sucesso exige não apenas fábricas de montagem, mas estabelecer ecossistemas de manufatura inteiros.” Esse desafio é particularmente agudo, dado que cerca de 75% da produção de baterias de veículos elétricos permanece concentrada na China.
A segunda frente estratégica envolve a mudança para veículos híbridos, que enfrentam barreiras comerciais menores (pelo menos por enquanto). Essa abordagem permite que os fabricantes chineses mantenham presença no mercado enquanto evitam as tarifas mais altas, mas também envolve riscos.
Alguns fabricantes vão ainda mais longe e desenvolvem novas linhas de produtos especificamente para os mercados ocidentais. A marca de carros de luxo Yangwang, da BYD, por exemplo, mira consumidores europeus de alto padrão com design distinto e tecnologia avançada, tentando competir pela qualidade, e não apenas pelo preço.
A terceira parte da estratégia envolve intensificar o foco nos mercados emergentes, onde as tensões comerciais são menos pronunciadas. [No Brasil, a Anfavea, Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, já dá sinais de preocupação.] O Sudeste Asiático, embora também duramente atingido pelo tarifaço americano, tornou-se uma prioridade também como mercado doméstico; os fabricantes chineses capturando mais de 40% do mercado de veículos elétricos da Tailândia em 2024.
“A estratégia de mercados emergentes é crucial,” explica Wei. “Esses mercados servem como campos de prova para a expansão global e ajudam as empresas a alcançar a escala necessária para continuarem competitivas.”
Para mitigar riscos, as montadoras chinesas também estão aprofundando seus esforços de localização nos mercados-alvo – incluindo centros de pesquisa e desenvolvimento, desenvolvimento de uma supply chain local e parcerias com empresas da região.
Desafios
As empresas, no entanto, enfrentam vários desafios na execução dessas estratégias.
O primeiro é o risco de reação política. Mesmo fabricando localmente, marcas chinesas podem enfrentar ceticismo por parte dos consumidores e reguladores ocidentais.
O segundo é manter vantagens de custo ao produzir fora do eficiente ecossistema manufatureiro da China.
E o terceiro é a necessidade de desenvolver talentos globais de gestão, capazes de operar em mercados diversos e ambientes regulatórios distintos.
Para ter sucesso, então, as companhias chinesas precisarão se transformar de meras exportadoras em verdadeiras montadoras globais. Essa mudança exige investimentos significativos em construção de marca, desenvolvimento de talentos locais e inovação tecnológica. Alguns fabricantes já estão formando parcerias estratégicas com empresas de tecnologia e universidades ocidentais para acelerar essa evolução.
Apesar desses desafios, as montadoras chinesas parecem continuar comprometidas com suas ambições globais. Os próximos anos serão cruciais para determinar se essas empresas conseguirão navegar pela complexa interação entre barreiras comerciais, dinâmicas de mercado e mudanças tecnológicas, ou não. O sucesso desses esforços também dependerá de como as montadoras dos Estados Unidos e da Europa reagirão ao novo cenário.
Enfraquecimento da competitividade americana
Para as montadoras tradicionais americanas, a barreira tarifária traz um desafio complexo. Embora ofereça uma proteção temporária contra a concorrência chinesa, pode acabar enfraquecendo sua competitividade global, segundo especialistas do setor.
“A história da indústria automobilística mostra que um ambiente competitivo é sempre positivo”, explica Cui. “A proteção artificial torna as empresas domésticas menos competitivas em longo prazo.”
General Motors, Ford e Stellantis enfrentam pressões particulares. Segundo a empresa de análise de dados inglesa GlobalData, só a GM pretendia, antes do tarifaço, importar mais de 750 mil veículos do Canadá ou do México em 2025 – incluindo novos modelos elétricos essenciais, como os Chevrolet Equinox e Blazer. Mas as novas tarifas de Trump sobre veículos fabricados no México tendem a perturbar severamente as supply chains estabelecidas.
A Tesla ocupa uma posição única nesse conflito comercial. Sendo ao mesmo tempo a principal fabricante de veículos elétricos dos Estados Unidos e operadora de uma grande fábrica em Xangai, a empresa precisa equilibrar cuidadosamente sua rede global de produção.
Embora tarifas maiores possam beneficiar a produção da Tesla nos Estados Unidos, elas vão impactar significativamente sua capacidade de otimizar a supply chain global e manter a competitividade de custos. A fábrica da Tesla em Xangai, que produz veículos para os mercados asiático e europeu, tornou-se uma das unidades de produção mais eficientes da empresa.
Para os consumidores em todo o mundo, o novo ambiente de mercados protegidos e produção relocalizada provavelmente resultará em preços maiores em curto prazo. “As tarifas certamente desacelerarão a adoção de veículos elétricos nos Estados Unidos”, afirma um especialista do setor. Os consumidores europeus podem enfrentar desafios semelhantes à medida que os fabricantes se ajustam às novas barreiras comerciais.
As implicações de longo prazo podem ser mais sutis. A busca dos fabricantes chineses por estabelecer redes globais de produção tende a levar a uma competição mais localizada nos principais mercados. “Assim como as montadoras japonesas se tornaram mais competitivas ao fabricar globalmente na década de 1980, as empresas chinesas podem emergir ainda mais fortes deste período de tensões comerciais”, afirma Wei.
Clima é o maior perdedor
O maior perdedor pode ser o clima. Preços mais caros e maior lentidão na adoção de veículos elétricos podem atrasar a transição global de combustíveis fósseis para a eletricidade. A ironia, conforme observam analistas do setor, é que as medidas protecionistas destinadas a fortalecer as indústrias nacionais talvez acabem retardando a inovação nas tecnologias necessárias para combater as mudanças climáticas.
À medida que essa nova era do comércio automotivo se desenrola, fica claro que o sonho de uma indústria automobilística verdadeiramente global, onde veículos e tecnologias fluem livremente entre as fronteiras, está dando lugar a uma realidade mais fragmentada.
Para os consumidores, isso provavelmente significa um futuro com maiores disparidades de preços entre os mercados e, possivelmente, acesso mais lento às últimas inovações automobilísticas. O desafio para os formuladores de políticas dos países será equilibrar as prioridades industriais domésticas com a necessidade urgente de opções acessíveis de transporte limpo para consumidores em todo o mundo.
*Reportagem de Mukul Pandya, colaborador da CKGSB Knowledge.