Ao longo da história, sociedades foram abaladas por eventos abruptos e transformadores cuja irrupção desafia os modelos estabelecidos de previsão, análise e governança para todo tipo de organização, e as empresas estão entre as principais desafiadas. Epidemias globais, colapsos econômicos, revoluções tecnológicas inesperadas e eventos climáticos extremos ilustram a presença recorrente daquilo que Nassim Nicholas Taleb denominou, em sua obra seminal, de “cisnes negros”.
A metáfora do cisne negro descreve eventos que compartilham três propriedades: são raros, de grande impacto e, a posteriori, são racionalizados de modo que pareçam menos imprevisíveis do que realmente foram. Taleb formaliza esse conceito argumentando que, por mais sofisticados que sejam os modelos probabilísticos, a distribuição de eventos extremos não segue padrões gaussianos, mas é dominada por “caudas pesadas” – regiões onde a incerteza é uma questão filosófica, do ser, não apenas estatística.
A recorrência de eventos dessa natureza revela uma tensão fundamental entre sistemas de previsão baseados em tendências e a dinâmica real dos sistemas complexos – muito do que importa para o futuro não é previsível com os dados do passado.
No entanto, o século 21 introduziu novos desafios no que Ziauddin Sardar descreveu como “tempos pós-normais”, caracterizados por quatro condições simultâneas: fatos incertos, valores em disputa, riscos elevados e decisões urgentes. Em tais contextos, a própria ideia de normalidade (e, com ela, a expectativa de estabilidade) se dissolve.
Nesse ambiente, o conceito do cisne negro ainda é central, mas torna-se insuficiente para capturar a natureza de certos fenômenos emergentes e, menos ainda, para articular as respostas a eles. Este artigo propõe uma uma extensão conceitual: a metáfora do “cisne vermelho”.
Enquanto o cisne negro representa o inesperado dentro dos limites do imaginável, o cisne vermelho designa eventos de ruptura cuja ocorrência não apenas desafia previsões, mas abala as próprias estruturas cognitivas com as quais tentamos compreender o mundo. É uma metáfora para o que é impensável por expor falhas estruturais no modo como construímos conhecimento e organizamos nossas instituições.
Dito de outro modo, se o cisne negro representa o que considerávamos impossível até sua ocorrência, o cisne vermelho simboliza o que permaneceria impossível mesmo após múltiplas manifestações de cisnes negros. A cor vermelha serve como alarme de perigo extremo.
Essa distinção entre eventos-cisnes é mais importante do que você imagina; é, na verdade, fundamental. Isso porque as respostas ao dois tipos de eventos imprevisíveis diferem: se os cisnes negros exigem novas estratégias de mitigação de risco, os cisnes vermelhos exigem novos modos de pensar a incerteza.
Entenda os dois cisnes
Cisne negro: Evento de baixa probabilidade, alto impacto e explicabilidade retrospectiva, que escapa à previsão por não se conformar às distribuições estatísticas convencionais, sendo posteriormente racionalizado após sua ocorrência (Taleb).
Cisne vermelho: Evento extremo de natureza sistêmica, ultra-imprevisível e de ruptura, que se manifesta na presença de sinais fracos ignorados, rompe com modelos preditivos dominantes e altera definitiva e estruturalmente as dinâmicas de sistemas interconectados, introduzindo irreversibilidades paradigmáticas.
Este artigo traz highlights do meu paper ”Ruptura Sistêmica e Inteligência Estratégica – a emergência dos cisnes vermelhos” que pode ser baixado aqui, abordando objetivamente três desafios:
- a vulnerabilidade dos mercados lentos diante de cisnes vermelhos;
- o papel da transformação figital na amplificação ou mitigação de riscos sistêmicos trazidos pelos cisnes vermelhos;
- a contribuição estratégica da inteligência artificial, segundo o modelo MIA de nove níveis, para lidar com eventos do tipo cisne vermelho; e
- a imaginação estratégica radical.
Mercados mais afetados por cisnes vermelhos
Na lógica da ruptura sistêmica, nem todos os setores econômicos são afetados da mesma maneira ou com a mesma intensidade. Há domínios que, por suas características estruturais, tornam-se naturalmente mais expostos a eventos de natureza vermelha, mesmo que sejam percebidos, em contextos estáveis, como vetores de segurança, previsibilidade e estabilidade.
É o caso dos chamados mercados lentos — categorias que incluem os setores de infraestrutura, energia e mercado imobiliário, além de mercados altamente regulados. Todos eles são caracterizados por altos ciclos de investimento, baixa adaptabilidade no curto prazo e forte dependência de regulações e planejamento de longo prazo.
A aparente solidez desses mercados, historicamente sustentada pela previsibilidade das suas funções — por exemplo, prover moradia, distribuir energia, garantir mobilidade, comunicação e saneamento — mascara fragilidades latentes. Essas vulnerabilidades se intensificam em um mundo marcado pela hiperconectividade, pela aceleração de ciclos tecnológicos e pelas interdependências globais em rede.
Quando atravessados por cisnes vermelhos, esses mercados podem não apenas colapsar localmente, mas gerar efeitos-cascata sistêmicos, impactando toda a sociedade. Repassemos brevemente cada um dos quatro segmentos:
Mercado imobiliário. Aqui cisnes vermelhos não se manifestam apenas por choques exógenos ou acelerações de tendências, mas por rupturas culturais, tecnológicas e ambientais que subvertem os fundamentos cognitivos e operacionais do setor. Tais eventos podem tomar a forma de transformações culturais profundas, como a adoção generalizada de modelos de vida e trabalho descentralizados, que redesenhem a lógica de localização, propriedade e uso dos imóveis; ou ainda eventos climáticos extremos e persistentes, que inviabilizem permanentemente certas regiões urbanas, forçando realocações em massa e reconfigurações do valor fundiário. Também entram nesse horizonte tecnologias paradigmáticas, como a habitação modular distribuída, acessível sob demanda via plataformas digitais, que possam deslocar o centro de gravidade do setor imobiliário para formatos mais líquidos, flexíveis e desmaterializados. Nesse cenário, ativos tradicionais — como imóveis fixos em zonas valorizadas — podem tornar-se obsoletos em poucas décadas, desafiando profundamente os modelos de investimento.
• Energia. A ocorrência de um cisne vermelho energético poderia tomar a forma, por exemplo, de uma ruptura geopolítica combinada com uma revolução tecnológica: a súbita viabilização de uma fonte energética abundante, limpa e barata — como a fusão nuclear controlada — poderia tornar obsoletos ativos bilionários baseados em petróleo, gás e carvão, gerando perdas sistêmicas e desemprego massivo em setores tradicionais. Alternativamente, ataques cibernéticos coordenados a redes de energia — hoje cada vez mais digitalizadas — podem paralisar regiões inteiras, como demonstrado pelo ataque ao Colonial Pipeline nos EUA em 2021. A transição energética, se não planejada de modo adaptativo e sistêmico, pode ser ela mesma um vetor de cisne vermelho.
• Infraestrutura. A ocorrência de um cisne vermelho em infraestrutura pode ser exemplificado pela possibilidade de um evento geomagnético extremo, como uma tempestade solar severa, que danifique simultaneamente satélites, redes elétricas e sistemas de telecomunicações. Outro cenário plausível é o de um evento climático extremo em áreas densamente urbanizadas, que cause colapso simultâneo de transporte, drenagem, abastecimento e segurança pública. Em ambos os casos, a interconexão entre sistemas atua como multiplicador do impacto, impedindo a recuperação isolada de componentes. Nesse sentido, quanto mais integradas e eficientes se tornam as infraestruturas, mais frágeis elas podem ser a choques sistêmicos — um paradoxo da modernidade identificado por Ulrich Beck como parte da “sociedade do risco”.
• Mercados altamente regulados. Áreas como saúde, finanças, previdência e telecomunicações, embora frequentemente operem com tecnologia de ponta e inovação setorial, compartilham uma vulnerabilidade profunda, apesar da resiliência aparente. A razão está na sua dependência de arcabouços regulatórios extensos, fragmentados e muitas vezes desatualizados, que limitam a capacidade de adaptação rápida a eventos de ruptura e canalizam o pensamento estratégico para dentro de molduras institucionais fechadas. O que os torna particularmente expostos a cisnes vermelhos não é só a inércia técnica ou capital imobilizado, mas a persistência de crenças, normas e valores que moldam sua operação.
Como exemplo, o setor financeiro, a excessiva confiança em modelos quantitativos consolidados, como a avaliação de risco baseada em Value-at-Risk (VaR), já contribuiu diretamente para o colapso sistêmico de 2008, um cisne negro. O mesmo ocorre na previdência pública e privada, onde premissas atuariais de longevidade, crescimento populacional e produtividade futura continuam a sustentar estruturas que podem ser profundamente abaladas por transformações demográficas, tecnológicas ou políticas repentinas. No campo das telecoms, a infraestrutura regulatória dificulta a incorporação de novos modelos distribuídos (como redes 5G descentralizadas ou internet por satélite global), o que deixa o setor vulnerável a rupturas exógenas que escapam ao controle das agências tradicionais. A presença de barreiras regulatórias de entrada também impede que soluções inovadoras surjam com velocidade suficiente para mitigar rupturas. Esses mercados operam sob o que poderíamos chamar de “governança da estabilidade”, que, em situações de cisne vermelho, pode bloquear a inovação, atrasar a resposta e amplificar o impacto sistêmico.
Transformação figital
A transição da economia e da sociedade contemporâneas para um regime cada vez mais orientado pela convergência entre o físico, o digital e o social inaugura o que este autor denomina “futuro figital”. Nesse novo paradigma, “tudo será figital”: produtos, serviços, organizações, pessoas, cidades e infraestruturas são articulados por meio de plataformas digitais, tecnologias de dados e interações sociais em tempo real.
A figitalização não se resume à digitalização de processos físicos. Ela pressupõe uma transformação estrutural da forma como os sistemas são concebidos, operados e governados. Nesse novo arranjo, os sistemas adquirem três propriedades: tornam-se hiperconectados, modulares, e passam a operar como plataformas abertas. As três são simultaneamente fontes de complexidade sistêmica e potenciais dispositivos de mitigação de riscos radicais, como explicamos a seguir:
• Hiperconectividade. A linguagem dos cisnes vermelhos, ela permite que um evento local — uma falha de software, um ataque cibernético, uma ruptura logística — se espalhe com velocidade exponencial por múltiplos domínios, gerando efeitos sincrônicos de grande amplitude. Contudo, também pode ser instrumentalizada para a resiliência adaptativa. Redes bem desenhadas, com monitoramento distribuído, diagnóstico em tempo real e coordenação entre agentes, tornam possível detectar sinais fracos, responder rapidamente a anomalias e reconfigurar fluxos de operação. É o caso das smart grids em energia, das plataformas de mobilidade em tempo real nas cidades, ou dos gêmeos digitais (digital twins) usados em infraestrutura para simular e antecipar falhas.
• Modularidade. Quando cisnes vermelhos atingemos mercados lentos, a modularidade aparece como antídoto à rigidez estrutural e institucional, permitindo o isolamento de falhas (que afetem um módulo e não o sistema inteiro) e rapidez de adaptação. Materializando isso: em energia, ela se manifesta na transição de grandes centrais para microgeração distribuída, baterias locais e redes descentralizadas, que permitem operar de forma autônoma em caso de falha sistêmica; no mercado imobiliário, em construções modulares, espaços multifuncionais e edifícios adaptativos, que podem ser rearranjados conforme novas necessidades urbanas ou mudanças demográficas; em infraestrutura, na concepção de sistemas plug-and-play, que possam ser expandidos, divididos ou reconfigurados sem necessidade de reconstrução total; em mercados altamente regulados, traduz-se em arquiteturas regulatórias e operacionais flexíveis, como sandboxes regulatórios, microserviços financeiros, modelos de atendimento descentralizados e regimes de interoperabilidade escalável, que permitem inovação incremental sem comprometer a segurança normativa ou a estabilidade do sistema como um todo. O desafio, no entanto, está na orquestração modular.
• Plataformas. Estas são novos regimes de organização: descentralizados, dinâmicos, escaláveis. Dissolvem fronteiras entre produtor e consumidor, entre empresa e cliente, entre público e privado. Nos mercados lentos, assumem formas distintas: na energia, surgem marketplaces de energia renovável, plataformas de gestão de consumo e interfaces para prosumers (consumidores-produtores), integrando produção descentralizada com redes inteligentes; na infraestrutura, vemos plataformas urbanas que integram sensores, dados de mobilidade, clima e infraestrutura para coordenação inteligente de serviços públicos e privados; no mercado imobiliário, plataformas como Airbnb, Zillow ou sistemas municipais digitais de gestão territorial introduzem novas lógicas de valoração, ocupação e governança do espaço urbano; em mercados altamente regulados, expressam-se por meio de fintechs, healthtechs, bancos digitais, registros médicos interoperáveis, plataformas de telessaúde e sistemas digitais de identidade e governança regulatória, não apenas otimizando processos, mas reconfigurando redes de valor e exigindo respostas institucionais inovadoras e adaptativas já que tencionam os limites da regulamentação. Se uma plataforma mal desenhada pode se tornar o epicentro de um cisne vermelho, uma plataforma bem concebida pode atuar como antídoto sistêmico, coordenando respostas, distribuindo inteligência e viabilizando recomposição adaptativa após uma ruptura.
Inteligência artificial
Quando pensada sob a ótica dos cisnes vermelhos, IA assume um papel ambivalente: pode ser fator de vulnerabilidade sistêmica, caso seja mal concebida ou mal governada, ou pode tornar-se ferramenta fundamental para mitigar rupturas e até antecipar configurações emergentes críticas.
Mais do que uma tecnologia operacional, IA deve ser compreendida como uma capacidade estratégica de alto nível, capaz de ampliar a percepção situacional, acelerar processos decisórios e reconfigurar modelos organizacionais em tempo real, podendo funcionar realmente como uma inteligência complementar à humana, voltada à antecipação de eventos extremos, à orquestração de respostas complexas e à reinvenção estratégica de organizações e mercados. Daí surge o que batizei de modelo MIA – Maturidade da Inteligência Artificial, que identifica nove níveis progressivos de capacidade organizacional em IA, distribuídos em três grandes blocos – inteligência operacional, inteligência decisional e inteligência estratégica.
Bloco 1 – Inteligência operacional
- Descritiva: coleta e agregação de dados para responder “o que está acontecendo?”
- Diagnóstica: análise causal para entender “por que está acontecendo?
- Preditiva: uso de padrões históricos e machine learning para prever “o que provavelmente vai acontecer?”
Bloco 2 – Inteligência de decisão
- Prescritiva: sugestão de cursos de ação ótimos dados os objetivos.
- Para decisão: apoio direto à escolha humana entre alternativas modeladas.
- Aumentada: combinação sinérgica de cognição humana e artificial na decisão.
Bloco 3 – Inteligência estratégica
- Autônoma: IA toma decisões táticas de forma independente.
- Adaptativa: aprendizado contínuo com base no ambiente e nos próprios erros.
- Estratégica: a IA participa do redesenho dos objetivos, modelos e caminhos de futuro da organização.
Esse framework permite avaliar o grau de maturidade das organizações em sua capacidade de lidar com a complexidade, de responder a mudanças de cenário abruptas, e de incorporar aprendizado em ciclos rápidos.
Como aplicar o modelo MIA
• No nível operacional e preditivo (níveis 1 a 3), a IA pode ser usada para identificar sinais fracos, padrões emergentes e correlações não lineares que precedem uma ruptura sistêmica. Algoritmos de aprendizado profundo treinados em fluxos de dados massivos — como sensores urbanos, redes sociais, variáveis meteorológicas e indicadores financeiros — são capazes de detectar anomalias complexas invisíveis à análise humana convencional.
• Nos níveis decisional e aumentado (níveis 4 a 6), a IA permite orquestrar respostas sistêmicas, gerenciar crises multivariadas, e sustentar deliberação informada em tempo real. Um exemplo prático está nas cidades inteligentes, onde sistemas integrados de IA permitem, diante de uma catástrofe climática, redirecionar rotas de transporte, acionar protocolos de emergência, coordenar recursos hospitalares e comunicar-se de forma segmentada com diferentes comunidades.
• Nos níveis mais altos da MIA (níveis 7 a 9), a IA adquire potencial transformador diante de cisnes vermelhos. Aqui, IA deixa de ser apenas uma ferramenta de gestão da complexidade e torna-se agente de reinvenção organizacional.
- IA autônoma permite que sistemas críticos operem de forma segura mesmo sem intervenção humana contínua, útil em contextos onde a comunicação humana esteja comprometida ou onde a latência de decisão seja intolerável.
- IA adaptativa aprende com os próprios erros e atualiza suas estratégias à medida que o ambiente muda, o que é essencial em contextos onde o padrão histórico deixa de ser um guia confiável, citando Taleb.
- IA estratégica, finalmente, é capaz de propor novos objetivos, novas formas de atuação, e modelos de negócios adaptativos, redesenhando a organização para cenários pós-crise. Essa IA atua como um “arquiteto de futuros”, não apenas como executor de tarefas.
Em síntese, a inteligência artificial pode ser a chave para atravessar contextos de ruptura radical sem sucumbir à paralisia organizacional. Seu papel não é eliminar a incerteza — o que seria impossível — mas conviver com esta de maneira produtiva, operando em um novo regime cognitivo em que a estratégia não significa mais controle, e sim adaptação informada, contínua e distribuída. Essa capacidade de aprender, reconfigurar e evoluir é determinante não apenas para sobreviver aos cisnes vermelhos, mas para transformá-los em plataformas de renovação profunda.
Imaginação estratégica radical
É necessário cultivar uma imaginação estratégica radical — aquela que aceita o impensável não como falha do sistema, mas como sinal da necessidade de redesenho profundo. Não se trata mais de resistir às rupturas, mas de aprender com elas.
As organizações que terão sucesso em tempos de cisnes vermelhos serão as que investirem em imaginação estratégica e modelos alternativos de futuro, fugindo da armadilha do determinismo tecnológico ou econômico;
DIANTE DO IMPENSÁVEL CISNE VERMELHO, o que se exige é preparo a partir de conhecimento, adaptabilidade em estrutura e imaginação coletiva, como apresentado neste artigo. Estratégia, no século 21, não pode mais ser um exercício de otimização sob estabilidade; deve ser, antes, um modo de habitar a incerteza com consciência, colaboração e inteligência distribuída.
Leia o paper completo aqui.