Quando falamos em inovação no varejo, as empresas, consultores e especialistas se concentram em transformações principalmente na camada de venda: desde experiências em loja, omnichannel, metaverso, realidade aumentada e até live commerce. Embora impressionantes, são apenas na forma de comprar, não na estrutura do negócio. A cadeia de valor permanece a mesma, inclusive com as ineficiências.  

Enquanto o Ocidente se distrai com melhorias incrementais, a China está redefinindo radicalmente o que significa “e-commerce”. Não se trata mais apenas de “comprar e vender” ou “fabricar e vender”, mas de reorganizar digitalmente cadeias inteiras de fornecimento, produção e consumo.. O futuro não pertence ao e-commerce tradicional, mas ao e-business  – uma expressão popularizada pela IBM na década de 1990 que faz cada vez mais sentido.

1. O problema do termo “comércio” no comércio eletrônico

Costumo dizer que o grande problema do “comércio eletrônico” está exatamente na palavra “comércio”. Ficamos presos a uma definição limitada de modelo de negócio que impede as empresas de enxergarem oportunidades além da transação. Não existe espaço para outras formas de ganhar dinheiro e relacionamento com o cliente não é tão importante quando a venda em sí.

Enquanto os players ocidentais ainda operam dentro dessa lógica, a China já migrou para um modelo mais amplo: negócios digitais integrados.  

2. A China como epicentro da inovação em e-commerce

Nos EUA, as grandes inovações do comércio eletrônico tornam-se cada vez mais escassas. A maior parte está na camada da tecnologia. A Amazon, pioneira em marketplace e assinaturas Prime, hoje copia modelos chineses, como Amazon Live, inspirado no sucesso do TikTok Shop e Amazon Haul, resposta ao Temu.

Enquanto isso, na China, empresas como Alibaba, Shein, Pinduoduo e Dingdong Maicai estão revolucionando toda a cadeia de valor, não apenas a venda.  

3. Do e-commerce para o e-business: Shein e a reinvenção do fast fashion

A Shein não é apenas uma loja virtual de blusinhas baratas como a maioria imagina. É uma plataforma de negócios digitais que está redefinindo a produção e distribuição de moda pelo mundo. Enquanto há a expansão das marcas chinesas de consumo pelo mundo, BYD para carros elétricos, Xiaomi para smartphones e TCL para TVs, entre outras, a marca chinesa de moda na verdade é uma empresa de tecnologia.

A Shein desenvolve impressionantes 1,5 milhão de novos modelos por ano, um número que deixa para trás até mesmo gigantes do fast fashion como a Zara, que lança cerca de 40 mil peças anualmente. Essa capacidade de inovação acelerada só é possível graças a uma cadeia de suprimentos hiper ágil, que permite que um produto passe do design à produção e chegue às vendas em apenas 7 a 10 dias – um processo que, no modelo tradicional de fast fashion, pode levar semanas ou meses.  

Por trás dessa revolução, está uma abordagem completamente diferente do negócio da moda. O fundador da Shein, Xu Yangtian (Chris Xu), não é um estilista ou um veterano do varejo, mas sim um cientista da computação com ampla experiência em marketing digital. Essa formação diferente explica por que a Shein opera mais como uma plataforma de dados e logística do que como uma marca de moda convencional, usando algoritmos para prever tendências e ajustar a produção em tempo real, eliminando desperdícios e maximizando a eficiência.

A Shein opera como um*orquestrador digital, conectando fábricas, dados de consumo e logística em tempo real.  

4. Dingdong Maicai: o maior case de “farm-to-table” digital do mundo

Recentemente, um grupo de supermercadistas brasileiros da delegação “Retail Experience” visitou a Dingdong Maicai em Xanghai. À primeira vista, parece apenas um e-grocery, mas na realidade, é uma revolução na alimentação:  

A Dingdong Maicai alcançou um impressionante GMV (valor bruto de mercadorias) de US$ 9 bilhões em 2023, consolidando-se como um dos principais players do mercado de alimentos online na China. Mas o que realmente diferencia a empresa vai muito além das vendas digitais: ela não se limita a comercializar produtos agrícolas, mas também possui suas próprias fazendas, garantindo controle total sobre a qualidade e o fornecimento.  

Além disso, a Dingdong investe em inovação agrícola, desenvolvendo sementes patenteadas e até mesmo exportando alimentos para outros mercados. Sua operação é sustentada por uma logística inteligente, capaz de realizar entregas em apenas 15 a 30 minutos nas principais cidades chinesas, graças a um sistema altamente eficiente de armazenamento e distribuição.  

Por trás de tudo isso, fica claro que a Dingdong não é apenas um supermercado online, mas sim uma empresa de agrotech e supply chain digital, que está revolucionando a forma como os alimentos são produzidos, distribuídos e consumidos. 

Vamos parar por um instante como isso pode impactar um dos maiores exportadores de alimentos para a China, o Brasil.

5. Os “cinco novos” de Jack Ma: o Alibaba como organizador digital de cadeias

Há alguns anos, o fundador do Grupo Alibaba Jack Ma cunhou o termo 5 New (New Retail, New Manufacturing, New Finance, New Energy, New Technology). A mensagem passou despercebida pela maior parte do mercado mas era clara: o Alibaba deixou de ser um varejista online para se tornar um **gestor digital de cadeias globais**.  

O conceito de New Retail (Novo Varejo) representa a completa integração entre lojas físicas e online, eliminando as barreiras entre esses canais. O Hema (conhecido também como Freshippo), do Alibaba, exemplifica esse modelo ao combinar vendas presenciais e digitais com entregas em minutos, usando dados em tempo real para personalizar experiências e otimizar estoques. Já o New Manufacturing (Nova Manufatura) transforma a produção industrial ao conectar fábricas diretamente ao comportamento do consumidor via plataformas como o Taobao. Isso permite fabricação sob demanda com base em tendências reais, reduzindo estoques e acelerando o ciclo de inovação – como ocorre com fábricas de eletrônicos que lançam novos produtos em semanas, não meses.  

Esses modelos mostram que a verdadeira revolução não está na digitalização de processos antigos, mas na reinvenção completa das cadeias de valor. Enquanto o Ocidente ainda discute o omnichannel, a China já opera em um paradigma onde o físico e digital são indistinguíveis, e onde a produção é guiada instantaneamente pela demanda real. Essa abordagem vai muito além do e-commercetradicional, configurando um novo ecossistema de negócios digitais que redefinem setores inteiros a partir do poder dos dados e da integração total entre consumo, produção e logística.

6. A disrupção do superapp: como a Meituan quer redefinir o mercado brasileiro

A Meituan, gigante chinesa que segundo o blog Neofeed está planejando entrar em breve no Brasil, é mais uma empresa chinesa que vai além da transação no app. Muitas vezes identificada como o iFood chinês – é um SuperApp integrado que revoluciona o conceito de plataforma de serviços. O correto deveria ser chamar a empresa de a “Amazon dos serviços”.

Com um GMV (valor total de vendas) de mais 12 vezes maior que o iFood, seu modelo combina delivery de alimentos (35% do negócio), reservas em restaurantes (18%), serviços de varejo (22%), turismo/hospedagem (15%) e até mobilidade urbana (10%), conforme dados divulgados no relatório anual da empresa. O diferencial está na integração total: enquanto pede comida, o usuário pode reservar mesa, avaliar o restaurante, comprar ingressos para eventos e até chamar um táxi – tudo dentro do mesmo ecossistema digital.

7. Último passo para o domínio total

Agora imagine todos os modelos conectados com o mundo.

A China reinventou o comércio global ao integrar sua capacidade produtiva industrial com experimentação digital em um ecossistema único. Imagine a fábrica e o laboratório de inovação conectados diretamente ao e-commerce crossborder – essa é a realidade atual. O consumidor moderno já compra produtos diretamente das fábricas chinesas, eliminando intermediários tradicionais, mas o modelo está evoluindo para setores impensáveis. Hoje, alguém no interior do Brasil pode encomendar um alimento plantado na China com sementes patenteadas, entregue por uma cadeia logística que conecta o campo chinês diretamente à mesa do consumidor global, sem passar por redes de distribuição convencionais.

Esse modelo radical de integração vertical está transformando a China na primeira economia direta em escala global, onde a distância entre produção e consumo desaparece. As plataformas crossborder não são apenas canais de venda, mas elos de um sistema que combina IoT (internet das coisas) agrícola, manufatura sob demanda e logística preditiva. Quando uma fazenda inteligente na província de Shandong ajusta sua produção baseada em pedidos internacionais em tempo real, ou quando fábricas redirecionam linhas de produção conforme tendências detectadas no TikTok Shop global, temos mais do que e-commerce – temos uma reengenharia completa das relações comerciais internacionais, onde a China opera simultaneamente como fábrica, laboratório e vitrine global integradas.

8. O e-commerce como o conhecemos vai morrer (e isso é bom)

O futuro disruptivo do e-commerce é muito além do que imaginamos. É sobre ser mais e-business e reorganizar digitalmente cadeias inteiras. Enquanto o Ocidente melhora a experiência de compra, a China redefine como os produtos são criados, produzidos e entregues.  

O e-commerce atual vai morrer. E na China, o processo já começou.

In Hsieh é um dos pioneiros do ecommerce no Brasil e principal especialista em negócios digitais entre Brasil e China. Atualmente, acelera negócios chineses no Brasil, com destaque para o social live commerce em parceria com Tiktok Shop, principal lançamento do mercado brasileiro em 2025. Além disso, é parceiro oficial do Alibaba Global Initiative, integrou a equipe que criou o Submarino em 1999 e participou da entrada da Xiaomi na América Latina em 2014.